sábado, 2 de novembro de 2019

Meses Áridos XIII – Espirais e Fractais

Voltei ao problema / Por outro sistema / E tomei formicida / E tive a maior surpresa de minha vida / Descobrindo assim / Que o que andavam servindo / Aqui no botequim / Não era tatuzinho / Chá de briga / Era tatu mesmo / O fazedor de orse de formiga -- Paulo Vanzolini, in ”Samba do Suicídio”

Mais uma viagem ao bebedouro, mais uma caneca de água semi-quente. Rotina. Vou e volto, volto e vou. De A a B, de B a C e de C para A. Se reclamo da rotina, percebo que reclamar da rotina já é também rotina. Se a ela me apego, e, por um acaso, uso, noutro patamar, de outra ótica, vejo que entre o desapego e apego há apenas uma diferença temporal. No fim do ciclo, tudo se repete. Anaciclose.

Se para Políbio eram seis ciclos de governo da Pólis, são aqui múltiplos estados de consciência. E, curiosamente, em alguns me governo mais, ao passo de que noutros mais me deixo levar pela correnteza do rio. Mas se a história só se repete como farsa, mal é isto um círculo. Talvez seja mais como uma espiral, cujo lance superior se projeta como mimese no lance que agora se percorre. E tudo se afasta do ideal na medida em que se esvai a juventude.

Mas se tudo é parte duma espiral, “voltei ao problema”, como diria Paulo Vanzolini, “por outro sistema”. Tentei focar um pouco nos detalhes, olhar mais para as pessoas, me aprofundar um pouco na vida, só para percebê-la a cada “ampliação” tão parecida quanto a versão não ampliada. E, no fundo, ainda que por outro sistema, torno às mesmas velhas questões, tal qual o personagem da canção de Vanzolini, que ainda outra vez não conseguira suicidar-se.

Encontro-me apegado à rotina, contudo. E por isso escrevo, como há pouco disse. O implacável tempo só me faz mesmo escorregar por esta espiral sem dar-me o tempo para pensar. Ainda que durante o implacável dia quente tudo pareça lento e tranquilo, pela noite agoniante me afligem as memórias do que poderia ter sido. E se não fora, logo examino, é mera culpa minha.

Posso ainda mergulhar mais um pouco sem, realmente, encontrar qualquer fato inédito. Se bem me conheço, assim funciono há muitos anos. Logo, estes anos passarão e serão tão pouco quanto mera nostalgia. E pela tangente não de se escapar se há tanto presos estamos nesta gaiola existencialista à qual a querida filosofia continental há muito nos relegara.

Árida como as paixões nos dias de intenso calor tropical, cortou certeira a garganta da já moribunda metafísica. Ao homem subtraído de sua capacidade de projetar mundos, limitado a enxergá-lo pelos embaçados óculos da dita realidade, que grandes perspectivas podem se desvelar? Logo, reexamino, além de culpar a mim mesmo pela pestilenta tendência ao ócio, também hei de afirmar que neste paradigma, para colocar de forma kuhniana, pouco comigo tem a ver. Só o aceito e nele surfo como meus colegas de geração.

sábado, 7 de setembro de 2019

Meses Áridos XII - Um prelúdio

Quebra-se hoje, um pouco, a tradição desta série. É que os derradeiros pingos de chuva caindo sobre o amianto das telhas da varanda já anunciam que, apesar dos resquícios de frio, há um calor vindouro. Em breve estaremos, ainda mais uma vez, dançando nas chamas do implacável calor, a cada ano mais intenso nesta tão complexa urbe. Ademais, não haverá mais aridez nas entrelinhas destes tempos malucos do que no clima? Estamos só e a sós permanecemos. E, a partir de amanhã, isto só será mais uma vez, como há muito tem sido, porém sob um inexpugnável sol tropical. Deusas e seus elixires relegam-se a um distante pretérito.

No verão, os livros na estante quedam, secos... Evito-os tomar às suadas mãos. No inverno, conservam a poeira do verão, afinal, ocupo-me da preparação mental para o calor vindouro. Repete-se, ad eternum, este terrível ciclo. Mas que há de se esperar diferente? Qual há de ser o louco a pedir da vida isto ou aquilo, se ao sabor dela e ao tempo dela que se ganha as coisas. E quem muito pede, digo com propriedade, ganha o que pede e ainda o que não pede.

Carpe Diem, com efeito, dizem. Bonito, belo, moral. Sobretudo depois de tantos Memento Mori. Mas aqui a via de saída é única: só de nós depende ganhar o dia. Não incomode, por favor, as entidades da vida. Elas existem pela beleza do mundo. Se as atrapalha, alguma vez, sequer a melhor feijoada por muito tempo há de desanuviar as mágoas vindouras. É, portanto, plausível optar por uma tácitca tranquilidade. Coachs e psicólogos insistem em chamar a isto de zona de conforto. Mas gosto de imaginar que é apenas o tempo necessário para tentar se segurar melhor no último galho antes do eminente precipício.

Mas tergiverso. Quero escapar, sim, da trajetória deste perigoso e enfadonho marasmo. Mas se ”entrar... sair... faz parte do talento individual de cada um”, conjecturo que com alguma sabedoria ainda é possível sair desta órbita sem que seja propelido por uma explosão, como há muito tem sido nesta vida. Mas a calma, a habilidade e a sabedoria só resolvem dar as caras após as explosões. Sou projetado para fora da zona de conforto por contas a pagar ou qualquer incerteza de que o horizonte hoje contemplado por estes olhos não seja nem um pouco familiar com o que sobre eles se projetará no futuro. O beijo da moça que gosto ou a benção da Deusa têm, há muito, passado longe de minha porta.

Vago, ainda, pelas ruas lamentando a primavera como quem lamenta, inutilmente, o passar do tempo. E pior: o avançar do clima. Nada melhorará, parece. E amanhã o sol volta para lembrar que na estrada de terra há ou lama ou pó. De tênis barrentos a narinas secas há menos meios termos do que gostaria. Deste modo, aproveito meu último dia de contemplação minimamente pensada para revelar, pasme, muito pouco mudou e muito pouco há de mudar. E desta matéria prima mal estudada e mal pensada será forjada, durante um ano, a alma até o próximo inverno. Ainda um ano a mais nado na mediocridade.

Se Fortuna favorece aos audazes, claro está que da Deusa não mereço benção.

sábado, 22 de julho de 2017

Campo Minado

Alfredo reside na rua dos Trilhos. É italiano de 1/4 do coração e habitante da Mooca por qualquer motivo. Quando não está perdido com os olhos nas copas das árvores ou perdido nas linhas da randômica enciclopédia, perambula inquieto as redondezas do ponto de ônibus. Enquanto as obras da casa ao lado jogam areia ao ar e o sol faz-se sentir mais do que qualquer um gostaria, o ônibus já atrasa vinte minutos. E lá está a cabeça de nosso Alfredo em plena atividade: toda a massa encefálica empenhada na nervosa e delicada tarefa de xingar a empresa. Mas da boca? Nem um tímido sussurro. De tão introvertido, pede licença até ao cachorro de rua, quando este lhe impede a passagem.

Chegando em casa, observa o telefone por cinco minutos. O aparelho permanece mudo. E a fita da secretária eletrônica de som gravado só apresenta o ruído próprio da fita cassete virgem. Só então ocorre a Alfredo jogar o paletó e a pasta sobre o sofá e lavar as mãos. É uma sexta-feira. As entusiásticas risadas do bar a uma quadra dali fazem-se ouvir em alto e bom som mesmo com a janela do apartamento ainda fechada. Além do ruído, entra pela janela a luz mortiça da rua e Alfredo, já de mãos limpas, senta-se ao sofá. Está só. Somente só.

A situação não é nova. Era apenas um dos milhares de finais de semana consecutivos em que a única companhia de Alfredo era seu próprio corpo não na melhor das formas. A secretária eletrônica, de novo checada, continuava limpa. Encarou então o relógio, por bons dois minutos. Depois perfilou mentalmente os livros na prateleira, puxou um volume dos Pensadores. À tépida luz do abajur, leu uma página, olhou para o teto, amargou alguns pensamentos e deixou o livro de lado. Apeando a agenda telefônica, com o gancho já apoiado pelo ombro, discou qualquer telefone. Era o de Beatriz. Longas três tentativas. Todas sem resposta. Lembrou então que Beatriz deixará de atendê-lo havia uma semana. Alfredo não sabia exatamente o porquê. Telefonou então a Luísa, com quem conversava pela segunda vez, ensaiando toda o humor aprendido com as séries de TV e os filmes de Woody Allen.

Não muito tempo depois, já extenuado pelo esforço unilateral em criar assuntos, mandou um beijo, despediu-se e desligou. Foi dormir. No dia seguinte, Luísa não mais o atenderia. Era este também um episódio tão consecutivo quanto os finais de semana solitários. Parecia um jogo de campo minado. Mesmo quanto tudo parece ir muito bem, a poucas casas da vitória, surge traiçoeira uma mina. Como era sábado, Alfredo perambulou pelas ruas da Móoca, fumando cigarros paraguaios. Era fim de mês e a conta bancária não mentia a respeito disso. Se ao menos tivesse escolhido uma carreira melhor... Não, melhor não. Vivamos aleatoriamente enquanto a vida segura o leme.

Nada de relevante, não obstante, aconteceu. E já é quarta. Dois maços de cigarro paraguaio depois, e apenas dois litros de cerveja – não dá para exagerar, né?! -- Alfredo saíra para almoçar. Seu trabalho pouco importa, afinal, basta que se diga que fazia o suficiente para um ser deveras preguiçoso. É de se presumir, então, que não batia cartão entre entrada e saída para o almoço. Alfredo toma seu tempo, então, e vai ao boteco perto da companhia. Ali fizera um social com várias moças. Fez-se de lacônico, trocou algumas piadas e anotou alguns telefones. Passou a fingir pressa para acelerar o processo e poupar vocábulos. Na verdade, eram mais três de um estoque aparentemente interminável de amigas de um amigo, que as “arranjou” para Alfredo.

A história, no entanto, repetia-se. Alfredo perguntava sobre como estava a vida, se gostavam de bolo, pastel ou pipoca, qual era o sabor favorito de pizza. E achava no meio período lacuna para piadas. As primeiras conversas tendiam a ser as melhores. Mas sentia que uma ou outra palavra, por vezes, vertia conversas boas em monólogos de sua parte, até a hora de desligar. E, então, não mais obtinha qualquer retorno. Há seis meses, desesperado, telefonou incessantemente a algumas das mulheres perguntando sobre qual teria sido sua falha. As poucas que responderam exercitaram-se prodigiosamente em dar as mais vagas respostas.

Perdido, então, fizera-se de indiferente. Era, porém, tarefa árdua. Traído por sua inquietude usual, empolgava-se e lá estava ele, cuspindo vocábulos. A cada conversa, um assunto ou frase murchava o interesse do outro lado da linha. Sentia então a esperança esvair-se, as paixões apagarem-se e a energia vital drenar-se. O que fez Alfredo, então? Repetiu a dose. E repete.

Às vezes adiciona uns cigarros, às vezes o desespero pela vida complicada. Mas sempre fiel à aleatoriedade e ao conforto mínimo que consegue obter. E vive em sua mente aventuras marcadas pelas primeiras páginas dos livros em sua estante, citações esparsas e imagens de suas sérias favoritas. Ali não existe paletó rasgado, e a Federação de Planetas Unidos não usa mais dinheiro. Cá, no entanto, finge acreditar na religião da pizza e depositar sua fé nos litrões com pastel. Mera cena. Não suspeita Alfredo, no entanto, o quão canastrão é.

segunda-feira, 15 de maio de 2017

Esperançosos Incendiários

 Que o brasileiro médio não tem medo de queimar o próprio pé ao pôr no fogo as “bruxas da corrupção” não há praticamente a menor dúvida. Acredito que já tenha falado sobre isso anteriormente, inclusive. Torno ao assunto porém à luz (ou às trevas, mais sinceramente) do recente surto de histeria coletiva contra o jornalista Reinaldo de Azevedo, da VEJA. No afã das paixões diárias, o militante direitista resolve que exorcizará qualquer resquício de corrupção, com fogo e bala, para o bem e a paz da nação!
No mundo, está difícil encontrar jornalistas prestáveis, especialmente nesses tempos em que as paixões são tão aceitas quanto argumentos. Se outrora já tivemos Paulo Francis, nos tempos de hoje temos Reinaldo. E ele merece o crédito por ser, por aqui, um dos poucos cujo QI não parece ser limítrofe. Ao menos, quando fala em Estado de Direito consegue articular um sistema lógico:  sabe que pimenta nos olhos do inimigo hoje pode ser pimenta nos olhos dos amigos amanhã.
Estive, timidamente, em algumas das manifestações pro-impeachment. Apesar de taticamente aliado, naquele momento, temia por uma coisa: e ser os únicos argumentos passassem a ser tão só e unicamente os alaridos e um pato de borracha gigante? Pois bem, parece que a coisa anda bem por aí. Se a esquerda, sabe-se bem, gosta mesmo é de uma boa instabilidade, pelo visto também pode levar o crédito por fazer a direita tomar gosto por este ofício. Ganhou uma parceira que também adora atirar pedras às instituições.
A fim de perder um pouco a esperança na humanidade, resolvi ler os comentários de um dos posts recentes de R. Azevedo no Facebook. Chocava-me haver poucas defesas ao jornalista dentre os virulentos comentários. Alguns chegavam a sugerir em tom de obtusa sinceridade ser Azevedo um “petista enrustido”. A que serve ser um “petista enrustido” num país em que a esquerda tanto grita ainda estou por entender.
Outros ainda taxavam os artigos do jornalista de ataques a “instituições sérias como a PF, MPF etc.” Uma engenhosa inversão que até pode pintar Reinaldo, ele mesmo, como um dos paladinos da desestabilização. Estão, no entanto, certos os comentaristas: são instituições sérias. Exageradamente sérias. E Maquiavel ensina que não faz mal desconfiar de gente desse naipe.
Sisudos e repletos de boas intenções, estes juízes e promotores. Ora, não é preciso ter muitos miolos para saber que de bem intencionados o inferno está cheio! Se reclamam que apelo para a tradição popular, pioremos o quadro: Jânio Quadros saiu por aí em sua campanha de vassoura na mão pretendendo limpar o país para, oito meses depois, enfiar o Brasil em mais uma de suas já cotidianas crises políticas.
Ou ainda Collor, cujo título de caçador de marajás facilmente ocultaria sua origem coronelesca. Podemos dar umas voltas na Europa do passado, também, e testemunharmos o trabalho dos jacobinos... Toda essa gente saiu de vassoura, faca e espada na mão. Deram uns tiros, arrancaram governos. E depois? Arrumarão um outro inimigo para se legitimarem? Abdicarão pacificamente de seus poderes para viverem numa pousada em Balneário Comburiu? Se a perguntar for difícil de responder, prefiro não me juntar às turbas ensandecidas.
Quando Reinaldo de Azevedo defende o abstrato Estado de Direito, só quer, na verdade que não encontremos na política o equivalente futebolístico dos jogos do Corinthians, em que, admitamos, uma mãozinha do árbitro não é coisa rara. Não que acuse aqui o Meritíssimo de Curitiba de dar facilidades ao time adversário. Até por que, que time adversário? A direita? O capital? Nada. O time adversário é o dele mesmo, que joga contra a política nacional.
Pede-se então que o magistrado em questão decida se é árbitro ou cartola. Aristóteles já dizia, no primeiro livro de sua Política: “o homem é um animal político”. Se o campeonato for aqui disputado entre diversos níveis da política (de presidente a síndico de prédio) pode aposta, meu irmão, que pelo o elenco da cidade gelada não passa ninguém não!
Reinaldo pede polidamente que não se ponha fogo no país. Ou as coisas ganham certo tempo para entrarem em seus lugares ou jamais entrarão. Se esse lava-jatismo insano perseverar, síndico de prédio há de se tornar a profissão mais ingrata e breve. Que dirá então o presidente! O Brasil pede uma cirurgia delicada, e estão tentando operá-lo com um martelo.

sábado, 10 de dezembro de 2016

Meses Áridos XI - Rememoração e Angústia

O já previsto apocalíptico verão faz-se sentir. Os termômetros batem recordes. E, ironicamente, de árido aqui não parece haver nada: é chuva, é umidade. Nublado é abafado, céu limpo é pele grelhada. E assim como a água do mar quente pela noite, cada gotícula no ar guarda em si a memória da terrível insolação vespertina.

Mas o tal elixir da deusa é daqueles que não se curvam às intemperanças térmicas do mundo contingente. Se ele falta, pode ser o contingente úmido ou seco, e ainda há de ser árido pela ausência de brilho ou glória. É tudo, enfim, pura estafa, letargia. Hei de confessar, no entanto, que pior é a solidão no verão, pois se o frio “abraça”, o calor só assa.

A estafa, no entanto, já segue contínua, resoluta, estável em sua trajetória. Atravessa invernos e verões (não há outras estações no clima tropical, e mesmo o inverno parece ser lendário) e continua esperando uma dose do elixir. No calor, porém, tudo é água, tudo é líquido. O que é elixir e o que é cerveja? O que é suor e o que é cachaça?

Provavelmente, o pior aspecto dos tais reais meses áridos seja justamente o recesso. A saudade carcome as vísceras, o contingente mundo tenta arrancar-te da metafísica e o estudo parece não progredir. No dia da almejada cerveja, cai a chuva. No dia de se lavar o tapete, raia o mais forte sol já visto. As tacanhas tarefas cotidianas arrancam qualquer glória enquanto a lâmina do amor não correspondido corta a garganta lentamente.

E onde estará a deusa? Se em sua mão tão poderosa e imortal substância pode reavivar qualquer soldado ferido em batalha, por que haveria ela de se preocupar? Mas a Deusa é a Deusa. Seletiva como tantas e tantas mortais. E mede o mérito da raça humana a partir dos mais tacanhos princípios morais. Requer sobretudo que não haja maldade. Aí, Deusa, pedes demais!

Há os que deste elixir se agraciem, aproveitando-se do eventual estado ébrio da deusa para tomarem, ocultadamente, o quinhão que lhes parecer suficiente. E nem tão difícil é, pois a deusa que vive entre mortais, na ebriedade não difere simples álcool de éter. Aliás, ela gosta de baladas regadas a vodca. Sua formosura é o único denário requerido.

Eu, no entanto, e alguns tantos outros, deixamo-nos engolir pelo contingente, negando à boate sua possível metafísica. Prefiro, no entanto poupar meus ouvidos, pois tanto já preciso ouvir... Quiçá um dia convençam a deusa sobre as maravilhas transcendentais do café e jazz. Não serei eu, no entanto: estou longínquo, programando, furando a parede e levando o lixo à lixeira.

quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Meses Áridos X - Retomada

São cíclicos os movimentos das nuvens, ainda que imprevisíveis. Mesmo assim, sabe-se que num dia chove, faz frio, venta. Noutro, racha o sol forte e tropical sobre as cabeças. Acontece, porém, que é justo por sermos tropicais é que raro mesmo é um dia de chuva e jazz. Domina o pagode, axé e sol de rachar. Há quem goste, mas há um certo articulista que não aprecia muito este ambiente.

Esqueçamos também a humidade. A mania cartesiana de enfiar a ciência no meio parou por aqui, pois a questão é literária. Parece mesmo que são os tempos, como se isso já não houvesse sido falado algumas dezenas de vezes. Pouco importa. O sujeito senta no banco do ponto de ônibus, mas muitos passam, nenhum é o dele. O calor é insistente. A cerveja faz falta, mas se tem é apenas Itaipava.

Já há muito se fora o elixir da Deusa. Talvez ela estivesse por lá como bom ouvido amigo. Era, porém, uma deusa de tempos remotos. Em tempos aridamente pós-modernos, só mesmo uma deusa kafkiana cairia bem. Embora, claro, ignorando uma provável contradição nos termos.

É uma estátua de jardim, mas fuma com estilo -- ou não fuma? Cada um faz a imagem preferida. Para Kafka, um humano pode verter em barata. Não pode uma estátua de jardim fumar?

O calor não dá trégua. Mais um pouco, a estátua derrete. Será de parafina, sal e água ou água e sal? É estátua mesmo? É vela ou fumante? Cada dia um aspecto, cada dia uma imagem. Um dia um universo, um dia, bem... um universo. Parece não estar no mesmo local. É, parece ser uma estátua. Dessas iluminadas por uma luz macabra, no fundo da mente.

Uma estátua ou objeto sensível regado a uma avaliação transcendental... meio kantiana. Entre o fastio do sol, um abraço sem correspondência e a incerteza das conexões entre objetos metafísicos, há quem não engasgue com tanta poeira de velhice e terra cansada?

Para quem passa a vida levando como hobby (ou profissão) uma arte empírica, cujo fim não é em si, tudo parece distante. São estas as pessoas solitárias, autômatas, cartesianas. Algumas se debatem em suas gaiolas, outras riem-se. Esse riso sim, com o fim em si, vã e rala tentativa de vencer o fastio da vida. Apenas apressa, no entanto, a chegada da aridez.

Há ainda os artíficies dessas ciências com fim em si. Ainda mais perdidos que os fúteis empíricos. Pesquisadores do Instituto Pinéu, tentando racionalizar ou relativizando razões nesta eterna casa da mãe Joana.

É dos tempos? É dos tempos. É de hoje? Talvez não. Só se deu a chance a alguns bocós de mola. Merecem? Vá saber. Nem lembro o que jantei ontem. E já me perdi novamente. Na verdade, na areia o potássio nem conduz. Acabou a sinapse.

Já a sinopse? Ela continua, inacabada, nauseabunda. O tempo insiste em continuar, o clima insiste em secar. Quanto menos água, mais briga. E quem escreve é quem ficou na berlinda tomando só a poeira na cara.

domingo, 1 de maio de 2016

Técnico III (ou IME I)

Há muito pareço estar apartado de meus velhos hábitos. Escrevia frases compridas como fios de macarrão. Os textos eram como spaghetti. O que, porém, terá mudado tanto? Duvido ter havido mudanças significativas, retive minha essência. Tardes se passaram, o sol se pôs milhares de vezes. Às vezes um tépido pôr do sol nublado, às vezes contrastando concreto enegrecido com céu ardente. Milhões de pessoas passaram, carros desceram, subiram. O caos e a confusão perduraram, muitas vezes. Houve paz momentânea. Mas somos paulistanos e a cidade não para jamais.

Esses tempos, porém, ando na mesma daqueles dias longínquos. Sento-me ao computador, abro as linhas de código e vejo se a elas dou melhor sentido do que aquele dado aos meus pensamentos. Num ato pragmático quem sabe não faça daquele código confuso a salvação para a ordem furada desses neurônios? A conjuntura agora é um pouco outra, é verdade. Sento-me ao meu lugar nas aulas de lógica de programação ainda coçando os olhos de sono. Não vejo o sol se por enquanto dou um jeito no Pascal, mas sim o sol raiar enquanto procuro dar sentido a algumas linhas de código C.

Se algo me dá saudade é daquele sintetismo único expressando os problemas da vida imediata. Azedo como Álvaro de Campos, assertivo como um pré-socrático. As imponentes frases impunham uma crítica afiada sobre tudo o que se vivia. Mas que adiantou? Quem é que tira margarina com peixeira?

A vida seguiu seus impulsos. Parte dela virtualizou-se, outra vive-se nos raros momentos de paz na urbe. Mas também não se ignore: no frenesi urbano há vida também. Cada indivíduo opera parte dessa máquina e gritar pela racionalidade ampla, geral e irrestrita parece tentador, mas é jacobinismo e impossibilidade combinados. Afinal, haverá uma consciência coletiva possível?

Juntei-me ao que via como algoz. As granadas de tela luminosa, os torpedos de SMS, as balas de mensagens instantâneas, tudo isso já faz parte do arsenal. Entrei para a guerra, mas luto com a vida e pela vida. Não esta breve e biológica, mas a grande vida humana. Temos nossas causas, nossas razões. Nem tudo se casa, mas a graça está no ponto fora da curva, despojado do plano cartesiano e suas razões quadráticas, cúbicas.

Dizem-me que o computador é cartesiano. Ele é. Por isso não é humano, mas é humano o suficiente enquanto dentre as linhas eletroeletrônicas há humanos trocando convivência e empatia em mensagens e sorrisos emulados. Bits sem vida são só bits sem valor. Deem-me trinta planos cartesianos: em cada um dou uma série de pontos. Os pontos são em si só matéria, mas dentro de minha mente ganham forma. E nisso a quarta dimensão metafísica entrega vida, variação. A forma a apreender a sequência aparentemente aleatória dos signos matemáticos pode não ser a mesma em todos, e nisso está a grande variação do mundo.

Livraria

Este texto começou a ser escrito em 2011, o finalizo agora, quatro anos depois, em homenagem a N. Neme

Cheiro de papel, luz mortiça. Estou em um porão de uma livraria, por assim dizer. Local feito comercial por um feliz (ou infeliz) acaso. É um lugar estranho para se estar a uma hora dessas (seis da tarde, enquanto escrevo). Porém, fui conduzido para cá em troca de bolachas. As mães não dizem para não se falar com estranhos? É, falam, mas quem disse que todos os estranhos são larápios?

Pois não são. Ao menos, sempre espero e nunca deixo de acreditar em uma ideia de que há empatia, ainda, entre nossos congêneres. Mas esta pessoa já não é, há muito, estranha. Dentre os dias nublados e ensolarados é uma constante encontrá-la, de sorriso aberto e animação incomparável, especialmente às 11h30 da manhã, quando o enfado das aulas assistidas mistura-se ao cansaço frente as próximas cinco, seis horas de técnico que em seguida virão.

E essa pessoa já foi estranha um dia. Arrisquei-me a corrigir algumas linhas de código e trocar ideias sobre a vida. Ganhei compreensão, abraços e biscoitos. Eu sei, a vida não é perfeita e tudo tem seu limite. Mas que poderia eu almejar? Em todos esses anos de amores platônicos e amizades incompletas, o plano de mordiscar alguns biscoitos enquanto discute sobre a literatura variada daquele porão, ali na Livraria da Villa, pareceria a joia da coroa.

Assim foi. Mas, ah, essa mania, passada à pena, de colocar tudo no paradigma da troca, do comércio e da balança! Quanto tempo demorarei para entender que não há valor na empatia e a amizade não se mede em ações simétricas. Temos os arranca-rabos e os bons momentos e a questão não é equilíbrio para todo o espaço e tempo – estes meros entes fenomenológicos. Temos as conexões e ali estarão, resistentes ao frio, calor, cidade, campo, praia ou qualquer coisa. Está na metafísica e não na esfera do físico, existente e corruptível.

Então, só me resta o quantitativo imensurável pela matemática dando os níveis da amizade. No fim, como se vê, comprei alguns livros. E a coincidência é engraçada: quem sabe não até me ajudaram a entender melhor essa tal de amizade? Não é estranho estar na livraria às seis, sete ou duas. Estranho é estar só. Esse “estranho”, sim, o mais desgraçado de todos.

Pelas calçadas rachadas da Vila Madalena, rachando espaço com jovens curtindo a sexta e observando o sobe e desce dos ônibus, o movimento dos bares, é que estivemos curtindo a cidade a um som de jazz, estivemos na mesma frequência do dial. Mas agora estamos na livraria. E é como o próximo som da rádio. Dançamos juntos, comemos biscoito. E se esta estranha fora larápia, só o pôde sê-lo por roubar um pouco dessa minha solidão.

E se depois da livraria mudamos de estação, trocamos berros... Bem, há músicas e músicas. Gosto de uma, você de outra. Muitas vezes, ambos gostamos. Mas é irrelevante, saltamos para a próxima conexão, trocamos um abraço. As folhas caem, a chuva lava as ruas, pegamos o trem cheio. A cidade vai passando pelas janelas, trocando os brilhos envidraçados pelas milhares de luzes pontuais. Eis que tal estranha faz-me descer do pedestal dos pragmatismos e cartesianismos. Olho para o vidro e vejo nosso reflexo, e o reflexo da cidade, de tudo. O mundo é grande e estamos nele, mas nos achamos. E de modo ou de outro a vida segue, mas não sozinhos a ela iremos.

sexta-feira, 25 de março de 2016

O moralismo é uma merda

Parece irônico. Como diriam aqueles populares do boteco: “gozado”. É bizarro (alô, J. Traveninsk), mas chegamos lá. Lutou-se contra dominadores, contra moralistas, contra fiscais de vida sexual alheia. Pediu-se uma sociedade mais justa, mais aberta. Sentimentos nobres, bonitos. E aparentemente tão nobres quanto a causa da liberdade individual.

Mas e o resultado, cadê? Alguém bem podia me dizer “sexo só depois do casamento” e isso poderia ser tido como moralismo. Porém, há alguma diferença entre dizer isso e dizer que não posso “fazer piadas ofensivas”? A boca é minha, ora. Falo o que quiser, tape os ouvidos quem se incomodar, a menos que eu esteja na propriedade privada de alguém, porque aí, bem, temos um conflito entre dois indivíduos de ideias distintas. Duelo de cavalheiros, senhores, get the hell out, government.

Era para estarmos mais livres, reza a lenda. Não me parece ser o caso. Para cada frase, termo e até artigos (como categoria lingüística!) podem indicar opressão. Mas minha boca oprime? Porque profiro uma ideia maldita sou dominador, exerço um discurso e provoco piora no quadro social? Ora, quanto poder vocês me colocam nas mãos! Sinto-me lisonjeado, coroado e laureado.

A meu ver, se quem tanto denunciou a opressão da sociedade vitoriana quer agora me colocar uma censura, só posso imaginar que este alguém não pode estar sério. Ou então, como dizem os falantes de inglês: is fighting fire with fire. No fundo, os defensores da igualdade social tem fetiche por poder, porque acham-se dignos de podem enfiar as botas em pescoço alheio. Afinal, não teriam tido botas em seus pescoços também?

Esses indivíduos pós-modernos (e afins) só querem mesmo ser o que jamais poderiam ser normalmente: burgueses. Suas imaginações são tão curtas que não pensam fora do “sistema” que combatem. Gostam de ter empregados, de ter o poder, tendo a impressão de que têm a carta branca para fazer o bem como entendem em suas mentes medíocres. São tão porcos quanto aqueles por eles combatidos. Mas os “porcos combatidos” ao menos tiveram a decência de produzir algo além de chorume intelectual.

Vós, senhores, sois os olhos do poder, que Foucault tanto denuncia. Vós sois os arbitrários a darem as cartas na vida pessoal alheia. Vós sois os fascistas. Um conjunto de velhinhas moralistas. Porque hoje, o ato do coito em praça pública pode até ser arte, mas vaiar nunca. A vaia é criminosa, opressiva.

E se, senhores, escrevo num lapso de raiva, penso que ameaças às liberdades individuais só se revidam com tacape. E aqui estou com quem é grosseiro, com quem xinga e com quem fala o que pensa. E até com Bolsonaro, com quem concordo pouco, mas penso ter todo o direito de falar o que bem entender. Fora, fascistas e fiscaiszinhos de opinião.

quinta-feira, 17 de março de 2016

Apodrecimento do governo, abandono do barco e o barril de pólvora do futuro

Parece-me bastante inútil versar sobre a gravidade da situação. Muita gente já está dizendo isso e o juiz a suspender a posse de Luís Inácio da Silva como ministro dá bons motivos para se considerar a situação grave. De qualquer modo, o ex-presidente sofre processos judiciais e nunca é de bom tom enfrentar a justiça se você tem a certeza da inocência. Mas isso ignoraram, o que é bom, porque aí chegamos à parte em que o indefensável fez quase todo mundo pular do barco.

Alguns não pularam, mas afundarão junto com ele. Inútil falar sobre isso. Os próximos a assumir o governo provavelmente quererão abandonar a pecha de defensores de gente corrupta, mas provavelmente também querem evitar um desgaste prematuro – de qualquer modo desgastar-se-ão frente à continuidade da Operação Lavajato, cujo objetivo é investigar a corrupção na alta esfera política e não derrubar o governo, simplesmente.

Caso o governo caia – o que ainda não é certo, cabe lembrar – não será o último. Resquícios da base, opositores de índole dúbia, fisiologistas famosos... Pouco a pouco serão riscados. A manobra de Moro parece ilegal, a princípio. E também imparcial, por “perseguir” apenas membros da gestão. Contudo, não deveria haver dúvidas: é de maior urgência ir atrás de membros envolvidos com um governo ativo. Por quê? Simples, gente de má índole governando prejudica o interesse público diretamente.

E não estamos falando de gente pouco artificiosa. Moro agiu com a máxima legalidade possível, se escapou a ela em um ou outro detalhe – o que não me parece o caso, mas suponhamos – foi apenas com o intuito de estar um passo a frente a quem tem inclusive instrumentos para obstruir a justiça. Um desses instrumentos é conceder o foro privilegiado, tal como estamos assistindo.

Desse modo, é bobagem falar em golpe. Se falarmos em golpe, só se for aquele desferido por aqueles que tanto chamavam os outros de golpistas.

A justiça deve ser feita conforme a lei. E está sendo. Mas, às vezes, em nome da lei – e existem muitas no Brasil, incluindo algumas conflituosas com outras – é necessário agir com uma rapidez muitas vezes não permitida normalmente ao sistema judiciário brasileiro, famoso por seu passo arrastado pelos infinitos recursos possíveis. S. Moro correu contra o relógio, antecipou sem aviso prévio alguns de seus movimentos. E o resto foi trabalho da polícia.

Ninguém pode criticar Moro por nada além de meras questões de data. E mesmo estas críticas merecem no mínimo um perdão, se comprovado que os acusados estavam deliberadamente destruindo provas e obstruindo a justiça – cabe relembrar: eles estão no poder.

Parece mesmo que os passos da justiça são mais uma questão de lógica do que de política.

Dito isso, lembremo-nos de que há um barril de pólvora aguardando por nós no fim desse túnel. A luz vista ali pode ser apenas a fagulha do pavio. E não será uma explosão provocada por meia dúzia de milicianos armados defendendo algo que já morreu. Tampouco uma nova cartada do governo (a essa altura já devem ter usado seu último curinga). É pior: são os resquícios ideológicos.

A história se repete como farsa. Como caricaturas do que gostariam realmente de ser, os universitários e seus professores podem até ser críticos ao governo, mas continuarão combatendo o “retrocesso”. Progressistas que são, continuarão encantados com uma certa ideia de igualdade. Por isso não se alinham de jeito nenhum ao que chamam de “direita”. Ficam no limiar, educando jovens a apoiarem a ideia do mundo mais igualitário e supostamente justo. Uma clara aberração antropológica.

Isto é, os jovens futuramente formadores de opinião (professores, jornalistas etc.) continuarão pensando tortamente, fazendo com que repitamos o erro mais algumas vezes. A conjuntura não é tão diferente, em essência, do que ocorreu com o PT em seu início. Era gente universitária honesta e fiel a seus princípios. Depois juntaram-se aos sindicalistas. E com estes aprenderam que a vida não era fácil, mas podia ficar se fossem espertos o suficiente. A conjuntura atual parece mostrar que aprenderam bem a lição. Mas mesmo a cara de pau tem limite.

Por outro lado, o que se chama de “direita” é uma massa apócrifa e ainda fortemente estatista – e não só: parece também ser propensa a engrossar o coro de alguns inflamados populistas. Este conjunto pode tornar-se fascista, a depender de uma série de fatores. Um deles é o possível recrudescimento das esquerdas (elas são minoritárias, mas nada supera seus megafones – exceto os perueiros de Cotia quando anunciam aos berros o destino da condução, ao estacionarem na estação Butantã).

Esta massa apócrifa pode rachar em apoiadores de J. Bolsonaro e M. Silva. Ambos problemáticos por motivos que, creio eu, são conhecidos por todos, mas resumirei: Bolsonaro é estatista e defende um conservadorismo torpe. Marina é dos verdinhos, adora afagar as ONGs estrangeiras e tem posicionamento político dúbio. Ainda sim, ambos parecem ter mais a ver com o espírito “apolítico” do brasileiro do que os inflamados petistas, cuja pretensão é saber o que é melhor para seu povo, tal como o Príncipe.

Mas o fato é que as coisas continuarão estagnadas. Ainda que as instituições democráticas se fortaleçam, a mediocridade prevalecerá. E a silenciosa guerra ideológica entre classes implantada nos jovens ainda provocará entreolhares cheios de ódio pelas ruas. O “nós contra eles” ainda fará vítimas da criminalidade e gerará outros conflitos sociais.

A única esperança é realmente o mercado. Apenas uma melhora econômica pode, a essa altura do campeonato, ensinar as vantagens de uma política econômica mais liberal e que as chances de igualdade são maiores quando o governo não interfere nas relações interpessoais. Uma economia mais forte, em que há atividade para todos e mais oportunidades, resta pouco tempo ao azedume do velho e desgastado discurso do “social”. Só que a economia é uma caixinha de surpresas e não me arrisco a fazer previsões, por ora. Aguardemos.

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Kolakowski: "O que restou do socialismo?"

Na falta de minhas próprias reflexões, trago ao meu blog o trabalho de um notável cientista político polonês, Leszek Kolakowski, habilmente traduzido para o português por Gil Pinheiro. Deixarei que a introdução e o texto falem por si. Infelizmente, o texto caiu mal na formatação limitada do blog, gostaria de corrigir o problema, mas optei por deixar assim a fim de não macular uma tradução de tal qualidade.

Introdução à tradução brasileira

A CADA UM DOS MEUS AMIGOS QUE AINDA TATEIA SOB AS SOMBRAS DA ESQUERDA SEM SOL

Você já leu o pensador polonês Leszek Kolakowski? Este ensaio foi publicado por ele em 1995 – 14 anos portanto antes da sua morte, em 2009. Suas ideias tiveram grande repercussão depois da queda do muro que decretou o “dream is over” do socialismo totalitário. No entanto, ainda existe muita gente que nunca ouviu falar dele no Brasil. Uma pena.Traduzo-o aqui, do inglês, em parte para tentar preencher um naco dessa lacuna. Em parte para ajudar os meus amigos a seguir, a caminho da luz, um autor cujas convicções de origem socialista souberam resistir à tentação da redenção pela tirania. É longo, mas vale a pena...

Gil Pinheiro, 1/09/2015


O que restou do socialismo?

Leszek Kolakowski, outubro de 2002

Tradução: Gil Pinheiro

Karl Marx – mente poderosa, homem sapientíssimo e bom escritor alemão – morreu há 119 anos. Viveu na idade do vapor. Nunca em sua vida viu um automóvel, um telefone ou uma lâmpada elétrica, para não mencionar dispositivos tecnológicos posteriores. Seus admiradores e seguidores diziam – e alguns ainda o fazem – que isso não tem importância e que seus ensinamentos ainda são perfeitamente relevantes para o nosso tempo, pois o sistema que ele analisou e atacou – o "capitalismo" – ainda prevalece. De que ainda vale a pena ler Marx não resta dúvida. A questão, todavia, é outra: será que sua teoria explica alguma coisa sobre o mundo em que vivemos ou fornece raspaldo para previsões? A resposta é não. Outra questão é se suas teorias, um dia, foram úteis ou não. E aqui a resposta é, obviamente, sim: elas tiveram muito sucesso como um conjunto de slogans propostos para justificar e enaltecer o comunismo e a escravidão que, inevitavelmente, comporta.

Ao indagar sobre o que essas teorias explicam ou o que Marx descobriu, podem-se questionar apenas as ideias específicamente colocadas por ele, e não banalidades do senso comum. Não deveríamos, por exemplo, menosprezar Marx, atribuindo-lhe a descoberta de que, em todas as sociedades não-primitivas, existem grupos sociais, ou classes, com interesses conflitantes, que os levam a lutar uns contra os outros. Isso já era conhecido dos historiadores antigos. Nem Marx nunca reivindicou tal descoberta e, como ele próprio escreveu, em carta de1852, a Joseph Weydemeyer, não foi ele quem descobriu a luta de classes; só quem provou que ela conduz à ditadura do proletariado, que, por sua vez, conduz à abolição das classes. Onde e como, porém, ele "provou" tal grandiosa afirmação em seus escritos anteriores a 1852 é impossível dizer. “Explicar" algo significa subsumir eventos ou processos a leis; mas "leis", no sentido marxista, não são a mesma coisa que leis para as ciências naturais, que as entende como fórmulas que afirmam que, em condições bem definidas, fenômenos bem definidos sempre ocorrem. O que Marx chamou de "leis" são tendências históricas. Não há, portanto, distinção clara, em suas teorias, entre explicação e profecia. Além disso, ele acreditava que o significado do passado e do presente só pode ser entendido com referência ao futuro, que ele alegava conhecer. Logo, para Marx, somente o que não existe (ainda) pode explicar o que existe. Embora deva-se acrescentar que, para Marx, o futuro existe, sim, de uma forma peculiar, hegeliana, ainda que seja incognoscível.

Ocorre, porém, que todas as profecias importantes de Marx se revelaram falsas. Primeiro, ele previu a crescente polarização das classes e o desaparecimento da classe média em sociedades baseadas na economia de mercado. Karl Kautsky, corretamente, ressaltou que, se esta previsão estivesse errada, toda a teoria marxista ruiria por terra. E é evidente que esta previsão estava errada, uma vez que o que se verifica, na verdade, é o contrário. As classes médias estão crescendo, ao passo que a classe trabalhadora, tal como definida por Marx, tende a diminuir nas sociedades capitalistas, no bojo do progresso tecnológico.

Em segundo lugar, ele também previu o empobrecmento, não só relativo, mas absoluto, da classe trabalhadora. Essa previsão revelou-se um erro no decorrer de sua própria vida. Vale lembrar que na segunda edição de “O Capital”, ele atualizou vários índices e estatísticas, mas não os relacionados com os salários dos trabalhadores. Esses números, se atualizados, desmentiriam sua teoria. Nem o mais doutrinário dos marxistas ousou agarrar-se a essa previsão, obviamente falsa, nas décadas mais recentes.

Terceiro, e mais importante, a teoria marxiana previu a inevitabilidade da revolução proletária. Revolução que nunca ocorreu em lugar nenhum. A revolução bolchevique na Rússia não guarda relação nenhuma com as profecias de Marx. Não teve como força motriz o conflito entre o proletariado industrial e o capital, mas, sim, a pressão de bordões sem nenhum conteúdo socialista, muito menos marxista, como: paz e terra para os camponeses. Bordões esses que, é desnecessário dizer, posteriormente redundariam em seu oposto. O que talvez mais se aproxime de uma revolução da classe trabalhadora, no século XX, foram os eventos de 1980/1981 na Polónia – movimento revolucionário dos trabalhadores industriais (muito fortemente apoiado pela intelligentsia) contra os seus exploradores, quer dizer, o Estado. E este caso solitário de revolução da classe trabalhadora (se pode, por isso mesmo, ser tido como tal) foi dirigido contra um estado socialista, sob a égide do sinal da cruz e com a bênção do Papa.

Em quarto lugar, poder-se-ia mencionar a previsão de Marx sobre a inevitabilidade da queda da taxa de lucro, processo que, ao fim e ao cabo, deveria culminar no colapso da economia capitalista. À semelhança das demais, outra previsão frustrada. Porque até mesmo segundo a teoria de Marx, isso poderia não constituir uma regra operacional obrigatória, visto que a mesma evolução técnica que diminui parte do capital variável nos custos de produção pode diminuir também o valor do capital constante. De modo que a taxa de lucro pode permanecer estável, ou até aumentar, ainda que o que Marx chamou de "trabalho vivo" decline em determinada ponta da produção. E mesmo que esta "lei" fosse válida, o mecanismo pelo qual sua ação provocaria o declínio e o desaparecimento do capitalismo é inconcebível, uma vez que a queda da taxa de lucro pode muito bem ocorrer em condições nas quais o valor absoluto do lucro está crescendo. Isto foi notado, em seus aspectos mais significativos, por Rosa de Luxemburgo, que inventou uma teoria própria sobre o colapso inevitável do capitalismo, que também não se demonstrou menos equivocada.

O quinto preceito do marxismo a revelar-se errado é a previsão de que o mercado acabaria por inibir o progresso técnico. Ora, o que ocorre é justamente o oposto. As economias de mercado mostram-se extremamente eficientes em incentivar o progresso tecnologico, enquanto o "socialismo real" sucumbe à estagnação nessa área. Visto ser inegável que foi o mercado que criou a maior abundância já conhecida na história da humanidade, alguns neomarxistas sentem-se obrigados a mudar de invectiva. Antes, o capitalismo era horrível porque produzia miséria; agora, é horrível porque produz tanta abundância que extermina a cultura.

Os neomarxistas deploram o chamado "consumismo", ou a tal "sociedade de consumo". Em nossa civilização, de fato, existem muitos fenômenos alarmantes e inoportunos, associados com o aumento do consumo. O ponto, no entanto, é que todos sabemos como a alternativa a esta civilização é incomparavelmente pior. Em todas as sociedades comunistas, as reformas econômicas (pelo menos as que conseguiram produzir algum resultado) levaram invariavelmente à mesma direção: a restauração parcial do mercado, ou seja, do "capitalismo".

A chamada interpretação materialista da história até nos forneceu um certo número de ideias e sugestões interessantes, mas sem nenhum valor explicativo. Em sua versão mais forte, mais vigorosa, e para a qual se encontra considerável apoio em um grande número de textos clássicos, tal teoria supõe que o desenvolvimento social depende inteiramente da luta de classes, determinada, em última análise, através da mudança nos "modos de produção", pelo nível tecnológico da sociedade em questão. Ou mais que isso, que a lei, a religião, a filosofia e outros elementos da cultura não têm história própria, visto que sua história é meramente a história das relações de produção. Ora, isso constitui uma afirmação absurda e completamente destituída de fundamentação histórica.

Por outro lado, tomada em seu sentido mais fraco e restrito, a teoria dirá somente que a história da cultura deve levar em conta as lutas sociais e os conflitos de interesse e que as instituições políticas, ao menos negativamente, dependem em parte dos desenvolvimentos tecnológicos e dos conflitos sociais. Isso, no entanto, não passa de uma daquelas indiscutíveis banalidades, conhecidas muito antes do tempo de Marx. O que faz da interpretação materialista da história ou um absurdo ou uma banalidade.

Outro elemento do pensamento de Marx carente de poder explicativo é sua teoria sobre o trabalho. Marx fez dois acréscimos mais expressivos às teses de Adam Smith e David Ricardo. Primeiro, afirmou que, nas relações entre trabalhador e capital, o que se vende é força de trabalho, e não trabalho; em segundo lugar, fez uma distinção entre trabalho abstrato e concreto. Nenhum desses dois princípios tem base empírica ou é necessário para explicar crises, competição e conflito de interesses. As crises e os ciclos econômicos explicam-se pela análise do movimento dos preços, e a teoria do valor nada acrescenta à compreensão de ambos. Ao que parece, a economia da época – enquanto distinta das ideologias econômicas – não seria muito diferente do que é hoje se Marx nunca tivesse nascido.

Os pontos que mencionei não foram escolhidos ao acaso: constituem a espinha dorsal da doutrina marxista. Em contrapartida, quase nada no marxismo oferece soluções para os diversos problemas do nosso tempo, principalmente porque esses problemas nem eram urgentes um século atrás. No que tange às questões ecológicas, por exemplo, não encontramos em Marx mais do que banalidades românticas sobre a unidade do homem com a natureza. Os problemas demográficos teriam passado completamente batidos, não fosse a recusa de Marx em acreditar que qualquer fenômeno parecido com uma superpopulação, em sentido absoluto, pudesse ocorrer um dia. Tampouco os dramáticos problemas do Terceiro Mundo achariam socorro em sua teoria. Marx e Engels eram fortemente eurocêntricos. Desprezavam outras civilizações e elogiavam os efeitos progressistas do colonialismo e do imperialismo (na Índia, na Argélia, no México). O que importava para eles era a vitória da civilização sobre o atraso; a ideia de determinação dos povos, para Engels, era motivo de escárnio.

O que o marxismo explica menos ainda é o socialismo totalitário, que elegeu Marx como seu profeta. Muitos marxistas ocidentais costumavam afirmar que o socialismo em sua expressão soviética nada tinha a ver com a teoria marxista e, se se revelou tão deplorável, foi mais por causa das condições específicas da Rússia. Se é assim, como é que tanta gente no século XIX, especialmente os anarquistas, poderia ter previsto, com tamanha exatidão, em que o socialismo,com base nos princípios marxistas, iria dar – ou seja, em escravismo de estado? Proudhon dizia que o ideal de Marx era transformar seres humanos em propriedade do estado. Para Bakunin, o socialismo marxista redundaria num governo dos renegados da classe dominante e teria por base uma exploração e uma opressão piores do que as anteriormente conhecidas. O anarco-sindicalista polonês Edward Abramowski sustentava que, se por milagre, o comunismo vencesse em meio às condições morais da sociedade contemporânea, traria exploração e divisão de classe ainda mais graves que as existentes à época (porque as alterações institucionais não alteram as motivações e o comportamento moral do homem). Benjamin Tucker dizia que a única cura que o marxismo conhece para os monopólios é o monopólio único.

Estas profecias foram feitas no século XIX, décadas antes da Revolução Russa. Seriam seus autores clarividentes? Não. Pelo contrário, tais previsões eram apenas deduções racionais e o sistema de servidão socializada podia ser inferido das coisas que Marx anunciava. Seria, é claro, absurdo querer dizer que tais consequências eram intenção do profeta, ou que o marxismo foi a causa eficiente do comunismo do século XX. A vitória do comunismo russo resultou de uma série de acidentes extraordinários. Mas é possível dizer que a teoria de Marx contribuiu fortemente para o surgimento do totalitarismo, e que o municiou de configuração ideológica. Ao enunciar a nacionalização universal de tudo, enunciou, consequentemente, a nacionalização dos seres humanos. Mais precisamente, o que Marx fez foi tomar emprestado aos saint-simonistas o mote segundo o qual, no futuro, não haveria mais governo, só a administração das coisas. Só não lhe ocorreu, porém, que não se pode administrar as coisas sem utilizar as pessoas para esse fim, e que a administração total das coisas implica a administração total das pessoas.

Isso tudo não significa que a obra de Marx não mereça ser lida; é parte da cultura europeia e como tal deve ser lida do mesmo modo que se leem muitos clássicos – como se leem, por exemplo, os trabalhos de Descartes em física, ainda que fosse tolo tomá-los como um manual válido para fazer física atualmente. Mesmo nos antigos países comunistas, a repugnância com que hoje são tratados os textos de Marx e dos marxistas deve passar; lá também, futuramente, eles voltarão a ser lidos como reminiscência do passado. Uma das razões da popularidade do marxismo entre as pessoas educadas é que, em suas formulações simples, trata-se de uma teoria fácil. Até Sartre notou que os marxistas são preguiçosos. Na verdade, o que essas pessoas apreciam é ter uma chave que abra todas as portas, uma explicação universalmente aplicável a tudo, um instrumento que torna possível dominar toda a história e toda a economia sem ter de propriamente estudar.

O desaparecimento do marxismo significa o fim automático da tradição socialista? Não necessariamente. Tudo, é claro, depende do significado da palavra "socialismo", e aqueles que ainda insistem em usá-la como profissão de fé geralmente relutam em declarar o que entendem por isso, fora do campo das generalidades vazias. Urge então que se façam algumas distinções. O problema é que o desejo de detectar "leis históricas" levou muita gente a conceber o "capitalismo" e o "socialismo" como "sistemas" globais, diametralmente antagônicos. Mas não há termo de comparação. O capitalismo desenvolveu-se espontânea e organicamente da propagação do comércio. Ninguém o planejou, nem ele demandava uma ideologia abrangente, enquanto o socialismo surgiu como um constructo ideológico. Em última análise, o capitalismo é a natureza humana em ação – quer dizer, a ambição humana autorizada a seguir o seu curso. Ao passo que o socialismo consiste numa tentativa de institucionalizar e impor a fraternidade. Agora, parece óbvio que uma sociedade na qual a ambição é a principal motivação dos atos humanos, não obstante os aspectos mais repugnantes e deploráveis que isso possa implicar, ainda é incomparavelmente melhor que uma sociedade fundada na fraternidade obrigatória, seja o socialismo nacional, seja internacional.

A ideia de um socialismo como "sociedade alternativa" ao capitalismo beira a noção de servidão totalitária; a abolição do mercado e a estatização generalizada não pode conduzir a outro resultado. E a crença em que se possa implantar uma igualdade perfeita por meios institucionais não é menos perversa. O mundo até conhece bolsões de igualdade voluntária, tal como a praticada em alguns mosteiros ou em algumas raras iniciativas de cooperação secular. Mas a igualdade obrigatória demanda métodos inevitavelmente totalitários, e o totalitarismo implica desigualdade, uma vez que pressupõe acesso desigual à informação e ao poder. Nem, para falar de um ponto de vista prático, a igualdade na distribuição de bens materiais é possível, uma vez que o poder se concentra nas mãos de uma oligarquia que não podemos controlar. Eis porque nada, nem de longe assemelhado à igualdade, jamais existiu num país socialista. O que condena esse ideal, de antemão, à autofrustração.Sabemos muito bem por que a ideia de uma planificação absoluta é economicamente catastrófica; as críticas de Friedrich von Hayek sobre isso têm sido amplamente confirmadas pela experiência de todos os países comunistas, sem exceção. O socialismo nesse sentido significa que as pessoas são impedidas pela repressão de engajar-se em qualquer atividade socialmente útil, a menos que sob as ordens explícitas do Estado.

Todavia, a tradição socialista é rica e variada, e inclui muitas expressões diversas do marxismo. Algumas ideias socialistas, na verdade, já vêm com uma tendência totalitária embutida. Isso se aplica à maioria das utopias do Renascimento e do Iluminismo, como também a Saint-Simon. Já outras adotam valores liberais. Tão logo o socialismo, que começou como uma fantasia inocente, se tornou um movimento político concreto, nem todas as suas variantes vestiram a ideia de uma "sociedade alternativa", e entre as que o fizeram, nem todas a levaram sério.

As coisas pareciam mais claras antes da Primeira Guerra Mundiai. Os socialistas e a esquerda em geral reivindicavam não somente escolas iguais, universais e obrigatórias, serviço social de saúde, impostos progressivos e tolerância religiosa como também educação secular, o fim da discriminação de nacionalidade e raça, a igualdade feminina, liberdade de imprensa e associação, regulamentação jurídica das condições de trabalho e um sistema de seguridade social. Todos lutavam contra o militarismo e o chauvinismo. Os líderes socialistas da Europa do período da Segunda Internacional – gente da estatura de Jaurès, Babel, Turati, Vandervelle e Martov – personificavam o que havia de melhor na vida política do continente.

Mas tudo mudou com o fim da guerra, quando a palavra "socialismo" (e em grande medida "esquerda") começou a ser quase que totalmente monopolizada pelo socialismo leninista-stalinista, que distorcia o significado da maioria dessas reivindicações e slogans, para defender o oposto. Ao mesmo tempo, na verdade, grande parte desses ideais "socialistas", foram sendo realizados pelos países democráticos que praticavam a economia de mercado. Infelizmente, os movimentos socialistas não-totalitários, sofreram décadas de inibições ideológicas e acovardaram-se ante a tarefa de denunciar e enfrentar o sistema político mais despótico e homicida do mundo (depois do nazismo). Afinal, o comunismo soviético não deixava de ser uma espécie de socialismo, ornado de internacionalismo e de uma fraseologia herdada à tradição socialista. Foi assim que a tirania leninista conseguiu apossar-se da palavra "socialismo" com a cumplicidade dos socialistas não-totalitários. Houve, é verdade, algumas exceções à regra, mas não muitas.

Seja como for, os movimentos socialistas contribuiram amplamente para mudar o panorama político para melhor, inspirando uma série de reformas sociais, sem as quais o estado de bem-estar social contemporâneo – que a maioria de nós vê como direito adquirido – seria impensável. Logo, será de fato uma pena se o colapso do socialismo comunista redundar no desaparecimento da tradição socialista como um todo e no triunfo do darwinismo social como ideologia dominante.

Tendo em conta que uma sociedade perfeita nunca será alcançada e que as pessoas sempre encontrarão motivos para tratar mal umas às outras, não deveríamos descartar o conceito de "justiça social", por mais que o ridularizem Hayek e seus seguidores. É verdade que é impossível defini-lo em termos econômicos. Nem é possível deduzir da noção de "justiça social" respostas para perguntas como: que tipo de sistema tributário seria mais desejável, ou mais plausível economicamente, em determinadas condições; que benefícios sociais se justificam ou não; de que modo os países ricos devem ajudar as regiões mais pobres do mundo. Quando se fala em "justiça social" não se expressa mais que uma atitude de consideração para com problemas sociais. E também é verdade que, frequentemente, a expressão "justiça social" é evocada por indivíduos, e até por sociedades inteiras, que se recusam a assumir a responsabilidade por suas próprias vidas. Mas, como diz o velho ditado, o abuso não ab-roga o uso.

Em sua imprecisão, o conceito de "justiça social" assemelha-se ao de “dignidade humana”. É difícil definir o que significa dignidade humana. Não é um órgão incrustado em nosso corpo nem um conhecimento empírico, mas, sem ela, seríamos incapazes de responder a uma pergunta tão simples como: o que há de errado com a escravidão? Igualmente vago, o conceito de justiça social pode ser usado como ferramenta ideológica pelo socialismo totalitário. Mas é um intermediário útil entre a exortação à caridade e à esmola e a justiça distributiva. Não significa a mesma coisa que justiça distributiva porque não implica, necessariamente, o reconhecimento recíproco. Nem consiste, porém, num simples apelo à caridade, pois supõe, embora imprecisamente, que algumas reivindicações podem ter seus méritos. O conceito de justiça social não implica a existência de algo semelhante a um destino comum da humanidade, de que todos participam, mas sugere que o conceito de humanidade faz sentido – não tanto como categoria zoológica, mas moral.

Sem o mercado, a economia entraria em colapso (na verdade, no "socialismo real" nem existe propriamente economia, apenas política económica). Mas existe um reconhecimento geral de que o mercado não resolve automaticamente todos os problemas humanos. O conceito de justiça social é necessário para justificar a crença na existênica de uma "humanidade" e em que devemos enxergar os outros indivíduos como membros desta coletividade, perante a qual todos devemos assumir certos deveres morais.

O socialismo, como filosofia social ou moral, fundamenta-se no ideal da fraternidade humana – que jamais poderia ser implantada por meios institucionais. Nunca houve e nunca haverá, instituição capaz transformar indivíduos em irmãos. A fraternidade compulsória foi a ideia mais perversa que os tempos modernos conceberam; e um caminho perfeito para a opressão totalitária. Neste sentido, o socialismo não passa de um primado da mentira. Isso, porém, não basta para transformar em sucata a ideia da fraternidade humana. Se ela, efetivamente, não pode ser alcançada por intermédio de engenharia social, seu conceito ainda permanece útil como declaração de objetivos. A ideia de socialismo como o projeto de "sociedade alternativa" está morta. Mas não como declaração de solidariedade para com os marginalizados e oprimidos, não como motivação para repudiar o darwinismo social, não como luz que ilumina diante dos nossos olhos propósitos mais elevados que a competição e a ganância. Como tudo isso, o socialismo – não o sistema, mas o ideal – ainda tem suas utilidades.


Leszek Kolakowski(1927-2009) foi membro do Partido Comunista polonês e professor da Universidade de Varsóvia. Foi desligado do partido e da última entidade em 1968, por desavenças políticas. Escreveu "Main Currents of Marxism" (original polonês, publicado em inglês pela Oxford Clarendon Press em 1978 na tradução de P. S. Falla), Horror Metafísico e outros. Lecionou em diversas universidades européias e americanas, firmando vínculo com Oxford, onde faleceu em 2009, deixando como legado uma extensa reflexão acerca dos aspectos metafísicos e culturais das sociedades ocidentais contemporâneas.