Quebra-se hoje, um pouco, a tradição desta série. É que os derradeiros pingos de chuva caindo sobre o amianto das telhas da varanda já anunciam que, apesar dos resquícios de frio, há um calor vindouro. Em breve estaremos, ainda mais uma vez, dançando nas chamas do implacável calor, a cada ano mais intenso nesta tão complexa urbe. Ademais, não haverá mais aridez nas entrelinhas destes tempos malucos do que no clima? Estamos só e a sós permanecemos. E, a partir de amanhã, isto só será mais uma vez, como há muito tem sido, porém sob um inexpugnável sol tropical. Deusas e seus elixires relegam-se a um distante pretérito.
No verão, os livros na estante quedam, secos... Evito-os tomar às suadas mãos. No inverno, conservam a poeira do verão, afinal, ocupo-me da preparação mental para o calor vindouro. Repete-se, ad eternum, este terrível ciclo. Mas que há de se esperar diferente? Qual há de ser o louco a pedir da vida isto ou aquilo, se ao sabor dela e ao tempo dela que se ganha as coisas. E quem muito pede, digo com propriedade, ganha o que pede e ainda o que não pede.
Carpe Diem, com efeito, dizem. Bonito, belo, moral. Sobretudo depois de tantos Memento Mori. Mas aqui a via de saída é única: só de nós depende ganhar o dia. Não incomode, por favor, as entidades da vida. Elas existem pela beleza do mundo. Se as atrapalha, alguma vez, sequer a melhor feijoada por muito tempo há de desanuviar as mágoas vindouras. É, portanto, plausível optar por uma tácitca tranquilidade. Coachs e psicólogos insistem em chamar a isto de zona de conforto. Mas gosto de imaginar que é apenas o tempo necessário para tentar se segurar melhor no último galho antes do eminente precipício.
Mas tergiverso. Quero escapar, sim, da trajetória deste perigoso e enfadonho marasmo. Mas se ”entrar... sair... faz parte do talento individual de cada um”, conjecturo que com alguma sabedoria ainda é possível sair desta órbita sem que seja propelido por uma explosão, como há muito tem sido nesta vida. Mas a calma, a habilidade e a sabedoria só resolvem dar as caras após as explosões. Sou projetado para fora da zona de conforto por contas a pagar ou qualquer incerteza de que o horizonte hoje contemplado por estes olhos não seja nem um pouco familiar com o que sobre eles se projetará no futuro. O beijo da moça que gosto ou a benção da Deusa têm, há muito, passado longe de minha porta.
Vago, ainda, pelas ruas lamentando a primavera como quem lamenta, inutilmente, o passar do tempo. E pior: o avançar do clima. Nada melhorará, parece. E amanhã o sol volta para lembrar que na estrada de terra há ou lama ou pó. De tênis barrentos a narinas secas há menos meios termos do que gostaria. Deste modo, aproveito meu último dia de contemplação minimamente pensada para revelar, pasme, muito pouco mudou e muito pouco há de mudar. E desta matéria prima mal estudada e mal pensada será forjada, durante um ano, a alma até o próximo inverno. Ainda um ano a mais nado na mediocridade.
Se Fortuna favorece aos audazes, claro está que da Deusa não mereço benção.