sábado, 2 de novembro de 2019

Meses Áridos XIII – Espirais e Fractais

Voltei ao problema / Por outro sistema / E tomei formicida / E tive a maior surpresa de minha vida / Descobrindo assim / Que o que andavam servindo / Aqui no botequim / Não era tatuzinho / Chá de briga / Era tatu mesmo / O fazedor de orse de formiga -- Paulo Vanzolini, in ”Samba do Suicídio”

Mais uma viagem ao bebedouro, mais uma caneca de água semi-quente. Rotina. Vou e volto, volto e vou. De A a B, de B a C e de C para A. Se reclamo da rotina, percebo que reclamar da rotina já é também rotina. Se a ela me apego, e, por um acaso, uso, noutro patamar, de outra ótica, vejo que entre o desapego e apego há apenas uma diferença temporal. No fim do ciclo, tudo se repete. Anaciclose.

Se para Políbio eram seis ciclos de governo da Pólis, são aqui múltiplos estados de consciência. E, curiosamente, em alguns me governo mais, ao passo de que noutros mais me deixo levar pela correnteza do rio. Mas se a história só se repete como farsa, mal é isto um círculo. Talvez seja mais como uma espiral, cujo lance superior se projeta como mimese no lance que agora se percorre. E tudo se afasta do ideal na medida em que se esvai a juventude.

Mas se tudo é parte duma espiral, “voltei ao problema”, como diria Paulo Vanzolini, “por outro sistema”. Tentei focar um pouco nos detalhes, olhar mais para as pessoas, me aprofundar um pouco na vida, só para percebê-la a cada “ampliação” tão parecida quanto a versão não ampliada. E, no fundo, ainda que por outro sistema, torno às mesmas velhas questões, tal qual o personagem da canção de Vanzolini, que ainda outra vez não conseguira suicidar-se.

Encontro-me apegado à rotina, contudo. E por isso escrevo, como há pouco disse. O implacável tempo só me faz mesmo escorregar por esta espiral sem dar-me o tempo para pensar. Ainda que durante o implacável dia quente tudo pareça lento e tranquilo, pela noite agoniante me afligem as memórias do que poderia ter sido. E se não fora, logo examino, é mera culpa minha.

Posso ainda mergulhar mais um pouco sem, realmente, encontrar qualquer fato inédito. Se bem me conheço, assim funciono há muitos anos. Logo, estes anos passarão e serão tão pouco quanto mera nostalgia. E pela tangente não de se escapar se há tanto presos estamos nesta gaiola existencialista à qual a querida filosofia continental há muito nos relegara.

Árida como as paixões nos dias de intenso calor tropical, cortou certeira a garganta da já moribunda metafísica. Ao homem subtraído de sua capacidade de projetar mundos, limitado a enxergá-lo pelos embaçados óculos da dita realidade, que grandes perspectivas podem se desvelar? Logo, reexamino, além de culpar a mim mesmo pela pestilenta tendência ao ócio, também hei de afirmar que neste paradigma, para colocar de forma kuhniana, pouco comigo tem a ver. Só o aceito e nele surfo como meus colegas de geração.

sábado, 7 de setembro de 2019

Meses Áridos XII - Um prelúdio

Quebra-se hoje, um pouco, a tradição desta série. É que os derradeiros pingos de chuva caindo sobre o amianto das telhas da varanda já anunciam que, apesar dos resquícios de frio, há um calor vindouro. Em breve estaremos, ainda mais uma vez, dançando nas chamas do implacável calor, a cada ano mais intenso nesta tão complexa urbe. Ademais, não haverá mais aridez nas entrelinhas destes tempos malucos do que no clima? Estamos só e a sós permanecemos. E, a partir de amanhã, isto só será mais uma vez, como há muito tem sido, porém sob um inexpugnável sol tropical. Deusas e seus elixires relegam-se a um distante pretérito.

No verão, os livros na estante quedam, secos... Evito-os tomar às suadas mãos. No inverno, conservam a poeira do verão, afinal, ocupo-me da preparação mental para o calor vindouro. Repete-se, ad eternum, este terrível ciclo. Mas que há de se esperar diferente? Qual há de ser o louco a pedir da vida isto ou aquilo, se ao sabor dela e ao tempo dela que se ganha as coisas. E quem muito pede, digo com propriedade, ganha o que pede e ainda o que não pede.

Carpe Diem, com efeito, dizem. Bonito, belo, moral. Sobretudo depois de tantos Memento Mori. Mas aqui a via de saída é única: só de nós depende ganhar o dia. Não incomode, por favor, as entidades da vida. Elas existem pela beleza do mundo. Se as atrapalha, alguma vez, sequer a melhor feijoada por muito tempo há de desanuviar as mágoas vindouras. É, portanto, plausível optar por uma tácitca tranquilidade. Coachs e psicólogos insistem em chamar a isto de zona de conforto. Mas gosto de imaginar que é apenas o tempo necessário para tentar se segurar melhor no último galho antes do eminente precipício.

Mas tergiverso. Quero escapar, sim, da trajetória deste perigoso e enfadonho marasmo. Mas se ”entrar... sair... faz parte do talento individual de cada um”, conjecturo que com alguma sabedoria ainda é possível sair desta órbita sem que seja propelido por uma explosão, como há muito tem sido nesta vida. Mas a calma, a habilidade e a sabedoria só resolvem dar as caras após as explosões. Sou projetado para fora da zona de conforto por contas a pagar ou qualquer incerteza de que o horizonte hoje contemplado por estes olhos não seja nem um pouco familiar com o que sobre eles se projetará no futuro. O beijo da moça que gosto ou a benção da Deusa têm, há muito, passado longe de minha porta.

Vago, ainda, pelas ruas lamentando a primavera como quem lamenta, inutilmente, o passar do tempo. E pior: o avançar do clima. Nada melhorará, parece. E amanhã o sol volta para lembrar que na estrada de terra há ou lama ou pó. De tênis barrentos a narinas secas há menos meios termos do que gostaria. Deste modo, aproveito meu último dia de contemplação minimamente pensada para revelar, pasme, muito pouco mudou e muito pouco há de mudar. E desta matéria prima mal estudada e mal pensada será forjada, durante um ano, a alma até o próximo inverno. Ainda um ano a mais nado na mediocridade.

Se Fortuna favorece aos audazes, claro está que da Deusa não mereço benção.