sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Oriente-se!




Era no tempo da copa. Os gringos chegam, e é um tremendo vai-e-vem de táxis e carros alugados. A cidade se extende mar de morros adentro, são doze milhões de habitantes em seus seis milhões de veículos. Entretanto, seis milhões sem carro não é baixo número: imagine todos esses seis milhões pendurados nos "seca-subacos" dos ônibus da cidade. Três milhões deles, sabe-se usam os mirrados quilômetros de metrô que a cidade tem, e o resultado disso não se deixa mentir pelas fotos publicadas nos jornais, vez por outra, na eventualidade de uma falha.

Mas para onde vão? De onde vem? Do que vivem? Ora, alguns fingem que estudam, outros fingem que trabalham, outros, mais honestos, se deixam confessar que vivem pelo smartphone. Porém, passear com o smartphone não é tarefa simples, em uma cidade tão grande. Quer ir à Rua Sete de Abril para obter o assalto perfeito? Ali passa o Estação da Luz. Quer ir à Santa Ifigênia? Ali passa o Praça Ramos. MAS ESPERE? O que é esse tal de "Praça Ramos", um pobre incauto poderia perguntar, com seu tablet debaixo do braço, pronto para uma leitura de um livro do Paulo Coelho. Você, paulistano da gema, responde maquinalmente: 8707 ¹.

E o que é esse diabo de 8707 ¹? O paulistano apressado aponta para um ônibus laranja e segue seu caminho antes mesmo de dizer "Boa tarde". Parece fácil, mas as linhas de ônibus não vão de um ponto a outro, apenas. Passam por uns, perpassam outros. É um ziza-zaque de um zique-zira danado. E quem explica? Freud sentiria dificuldades, ao desembarcar no Terminal Santo Amaro. Por que tantos números, placas, códigos?

O sistema de ônibus de São Paulo é uma equação de segundo grau que nem Pierluigi Piazzi resolve. Aliás, ao que sabe, nem a equipe da gestora de transportes poderia resolver, mesmo em equipe. O metrô é simples, cada estação é uma fanfarra de luz e gente bem sinalizada. Mas e um ponto? Um ponto é um toco de madeira espetado na calçada. Às vezes é uma suntuosa estrutura de metal. Mas e a lista dos serviços? Ninguém sabe, ninguém viu. O Zé Tião da Padaria vai saber te informar melhor, meu.

Para começo de conversa, temos um sistema multicolorido no qual cada área tem uma cor, mas no qual, também, pode-se ver um ônibus da puta que o pariu extrema atravessando NUMA BOA outra área. Esqueça a cor, certo? Vamos aos números. Aos milhões de passageiros? Não, meu caro. Há um código de quatro caracteres, exibido pelos ônibus. É o 8707 do qual você não entendeu nada. Desses quatro caracteres, temos o primeiro, que não quer dizer absolutamente nada, o segundo, que não diz lhufas, o terceiro, que não faz sentido e, por final, o quarto, que às vezes é uma letra, às vezes um número. E agora, José?

Para Platão, a idéia de código é outra. Peguemos 828P, por exemplo. O oito é a área, o dois é alguma distância aleatória que o burocrata pegou e o oito é, em tese, a área final. "P" é um ponto importante no qual ele passa. Na prática, isso funciona: Lapa (área 8) -> Barra Funda (área 8), via algum lugar que comece com P (ou tenha P como letra marcante). Às vezes também pode ser a inicial da paixão do burocrata que criou a linha ou do filho mais novo dele. Se temos quatro dígitos numéricos, a linha é daquelas que dão volta dentro do bairro ou vão parar em algum lugar do centrão, nesse caso, o primeiro dígito é a área de partida, o segundo é geralmente "zero" e os outros dois definem onde o busão para, se é ao lado do mendigo conhecido ou se é do lado do prédio precisando de reparos.

Brincadeiras à parte, há, claramente, um critério para tudo isso. Mas a prática é que esse sistema foi criado na gestão de Olavo Setúbal lá pelos idos de 79 e sobreviveu à diversas mudanças no sistema. How come? Ora, se você já tinha trinta anos em 79, deve ter odiado saber que seu ônibus "666" virou "866B" ou algo do gênero. Eram nove áreas, tudo era bonito e fazia sentido. E se não fizesse, a CMTC fingia que sim. Entretanto, das nove áreas, fizeram quatro. E das quatro fizeram oito, algum tempo depois. E em meio a esse samba do criolo doido, mantiveram o sistema, pois o João da Silva que pegava o 666 detestaria descobrir que o seu ônibus virou 4-066X.

E as cores? Ah, as cores, que pedi para esquecerem. Doutor, veja bem: não é que devem ser esquecidas, mas somos latinos. Como bons latinos, somos especialistas em produzir nuanças gritantes, por mais paradoxal que isso seja. Mas, ora, doutô, somos o paradoxo! As cores remontam, também, ao Olavo Setúbal. A mixórdia de concorrentes, coloridos e outros tipos precisou parecer mais oficial, daí tiveram a idéia de estipular cores para cada uma das nove áreas, sendo que os ônibus seriam pintados no esquema saia e blusa, tendo a saia na cor da região. Ainda havia um sinal forte de que o ônibus era de tal ou tal companhia. Isso, porém, se extinguiu por completo quando a Erundina resolveu concorrer com o Serra e vender seus próprios remédios: aquela famosa pintura da faixa vermelha.

Agora todos sabiam que o "Transporte é um dever do estado e um direito do cidadão". Difícil mesmo era saber de cara quem era o filho da puta que operava aqueles ônibus malacafentos cheios de barata ou daquele desgraçado que não pára nos pontos nem com o ônibus vazio. Impossível era saber, então, de rabo de olho, se aquele ônibus vai para o INOCOOP ou se te levava para as profundezas do Capão Redondo.


Os medicamentos genéricos de Erundina: tão genéricos que a cidade toda usava, recuse imitações. 

Foi assim por longo tempo. Havia variações, como a faixa azul para os ônibus de cooperativa, bem como a faixa verde, para os carrões bem motorizados, resistentes e geralmente usados nos corredores criados por Setúbal (somado a uns já projetados, porém mal implantados). Entendeu? Esqueça tudo. Agora temos novamente quase nove áreas, porém menos uma. São oito, e listar aqui dará sono. Jogue no Google Images: "Áreas São Paulo". A oitava área é laranja, daí o exemplo do 828P e 8705. Agora sabemos para onde o ônibus vai, embora continuemos sem saber de cara quem opera o carro, já que agora é ainda mais fácil de se esconder o logotipo da empresa. E aí chegamos ao problema do "doutô", ali acima: você pode estar em um ponto de ônibus na Raposo Tavares, em plena área oito, e ainda sim vir passar um ônibus verde escuro, indo ao Ipiranga (mas que na verdade vai além e finca sua estaca no Sacomã).

O fato é que não há verdade quando se fala no sistema de ônibus paulistano. Quem conhece, conhece por meio do empirismo. A falta de carro e metrô é um bom meio de treinar os usuários. Os corredores existem, sim, mas não levam objetivamente de um ponto X ao Y. Experimente pegar um ônibus qualquer no meio da Rebouças. Você pode chegar ao Paraíso, à Liberdade ou ao inferno (também conhecido como Praça da República). O resultado da aleatoriedade é inversamente proporcional ao destino em que você precisa chegar.

E, enfim, jogando os dados no tabuleiro e anotando os resultados é a melhor forma de se andar por aqui. Há um amigo meu que tem algo chamado "ansiedade social" ou, em outras palavras, timidez para falar com outros humanos que não os de sua própria manada, sei que ele jamais perguntaria ao seu Zé da padaria. Carajaense da gema, dois, três anos de São Paulo e uma dose de sorte é tudo o que tem nas mãos, depois do confuso site de nossa caríssima gestora de transportes. E, como se não bastasse a multicolorisse, ainda há ônibus prateados, há ônibus intermunicipais e diversos outros tipos de transporte de massa sobre pneus que chamam por aí de micro-ônibus (costumo chamá-los de escória).

Segue assim, que de bar em bar ou de barra em barra, Deus que protege os bêbados e desamparados cuida de levar seus escolhidos para casa. Caso você ouça AC/DC é provável que seu destino seja forçosamente Itapecerica da Serra, então sempre é prudente mencionar que estamos falando de um Deus cristão, entendem? Veja ali: aquele ônibus é abençado por Deus -- "Deus é fiel". Tão laico quanto o sistema da cidade é impossível, já que os ônibus são de Deus, os usuários de Judas e o sistema de Satanás. Aonde quer que você vá, bíblia e candelabro debaixo do braço e lá te vejo! Boa viagem.

Notas:
¹ Segundo o leitor e grande amigo Pedro L. N. Christensen, a linha 8707 apenas tange a Praça Ramos. Vergonha para quem entende razoavelmente de transportes como eu cometer semelhante erro. Mas vejamos isso como um grande exemplo dessa grande confusão.

segunda-feira, 30 de junho de 2014

Urbeum Organum



E naquela manhã, o céu se abria numa aura indescritível. O amanhecer de domingo cobria tudo e todos os cantos. Quase sem rumo, marchando calmamente conforme o Requiem de Mozart, ou grandiosamente conforme 1812 de Tchaikovsky, um indivíduo conseguiu notar o que jamais notaria enfiado em um boné com Sonic Youth nas orelhas e em missão à Santa Ifigênia: o centro antigo sorria com sua velha e surrada dentição, as árvores em contraste com as luminárias ainda acesas carregava o olhar por linhas que sem encerravam na fachada do Edifício Banespa. São João acima, entre restos e rastros, a urbe emerge aos olhos de quem começa a entender a vida.

Pois a vida é como a urbe, afinal. É preciso descobrir suas entranhas, suas saliências. Os relevos dos quais se descortina a vista infinita do mundo, de planalto a planalto. Ao fundo, o quadro encerra-se em duas maduras montanhas. Os prédios, rígidos, fincam firmes fundações na derme urbana, sob a qual o coração nuclear conduz tudo, todos. As árvores brotam como as sardas, as marcas de nascença. E ao fundo, o céu observa, calmo, brigadeiro, matreiro o vai-e-vém abaixo de seus olhos perdidos.

Se corri as ruas em busca de uma tal Vontade Capital, cansado, noite adentro, vi a urbe abraçar-me e encostar seu queixo em meu ombro, dizendo-me ao pé do ouvido sentimentos expressos sob buzinas de carros, motores a diesel e um rufar da solidão pós-semaforo em um dia tranquilo. Como mãe que não abandona seus filhos, fez-me erguer e caminhar, "vá, meu filho, busque e entenda meus sinais, que verá em mim a vida em sua mais completa tradução".

E, agora, que cruzo a Ipiranga com a Avenina São João, posso não entender nada da dura poesia concreta de tuas esquinas, mas da USP à República, já delineio os lábios com os quais não poderia dialogar e finalmente entendo que o físico a rir das Mõnadas Leibnizianas jamais poderia compreender a maior metáfora da vida em sua maior plenitude.


quinta-feira, 5 de junho de 2014

Sapatilha verde-água

Originalmente escrito em 2 de junho de 2013 (um ano atrás)

Uma mulher, de cabelos soltos e ligeiramente enrolados, brincos de penacho e leve batom vermelho, rumava por alguma calçada estragada da cidade, vestida por uma capa masculina relativamente grande para seu tamanho esbelto. Enfrentava as ruas com os lindos pés em uma sapatilha verde-água.

Seu nariz projetava-se proeminentemente na silhoeta desenhada no chão pela luz da iluminação pública. Era noite, esqueci-me de mencionar. Sua respiração calma derretia o coração de praticamente qualquer sujeito. Nada se podia dizer sobre a voz... Não estava falando. Apenas passava. Caminhando para longe.

De longe, um sujeito de pouca barba e borsalino observava o distanciamento da mulher, vestido apenas por uma camisa xadrez. Pouco via-se do sujeito, que conservava-se na penumbra. Apenas divisava-se um brilho longíncuo nas lentes dos óculos que utilizava. Uma fumaça branca erguia-se de seu rosto para o céu infinito.

Nesse instante a mulher já se distanciara bastante. E a cena se decompunha, como em um sonho. O céu tomava cores cada vez mais claras e um ônibus agora levantava a poeira outrora revolvida pelas sapatilhas verde-água.

Dentre o movimento, milhares de cabelos ao vento, batons, tons cintilantes e calmo. Quem seria aquela dama? Será que habitava a mesma terra dos homens? Quiçá metade habitasse, e outra não.

Sentado no muro, um rapaz de óculos tocava guitarra. Sei que eram notas, não sei que gênero, não sei que artista, não sei que música. Mas todos passavam direto. Se, porventura parassem, vidravam. Não pela técnica, não pela guitarra... Mas pelo sentimento que ali pairava.

Abaixo dele, estava ali, caído, um brinco de penacho e um botão. Um botão de sobretudo. A cinza e as folhas cobriam os dois objetos, por sua vez recobertos pelo som da música. Caía a noite e aqueles objetos continuavam ali. As penas de um animal, o plástico da indústria. Natureza e cidade se confundindo.

Naquela noite a cena ameaçava repetir-se. Porém via-se apenas uma figura de guitarra no colo, envolviva em uma capa. Novamente um borsalino e lentes. Uma fumaça acompanhada de notas músicais erguia-se timidamente ao lado do pequeno muro de pedras que separava o jardim da calçada.

A mulher não passara novamente ali. Talvez a mulher só existisse na mente, como deusa. Talvez fosse real, mas ficava para trás como quase tudo na vida, que não seja o cobrador e o motorista.


domingo, 2 de março de 2014

Turmalina: idas e vindas, vida e volta ao Bofiglioli

Quando mudei-me para Turmalina, havia, ali, um dos últimos lugares em que pude ser eu mesmo. Meu jeito por vezes sério, por vezes pueril encontrava ali energia para todos os ânimos: Turmalina era um dos últimos lugares em que era possível ir à padaria para comprar pão e leite tipo A; era um dos únicos lugares em que, até duas da manhã, nada mudava muito em relação às seis da tarde.

Claro, digo duas da manhã porque não estava lá para ver se o movimento continuava, pois, dizem, "nada acontece de bom depois das duas da manhã" -- e não me faltaram situações para aferir a veracidade desse ditado, embora nenhuma haja sido em Turmalina.

Os moradores eram gente pacata, mas havia algo na Av. Giovanna Cabral que tornava Turmalina um ícone boêmio, além de seu nome digno de música: as casas de show. Não era possível falar muito em bares, pois "a Cabral", tal como referida pelos moradores e frequentadores, era um baluarte da arquitetura neoclássica e a prefeitura proibira modificações -- e ainda havia um rígido conjunto de regras sanitárias e estéticas ditado pela subprefeitura.

Lembro-me bem da Rosa Púrpura da Alves, situado na intersecção entre a comercialmente movimentada Av. Maria Martha Alves e 'a Cabral'. O lugar tinha nome de bar de português, mas, se bem me lembro, o Marquito -- proprietário do estabelecimento -- era de Valência. As mesas eram cobertas com toalhas de pano esburacadas que só se justificavam perante as regras da prefeitura a título de estilo, somado ao fato de que a cultura dos fiscais não os permitia aferir se batia com a arquitetura oitentista do restaurante.

Sentava-me ali, duas fileiras para trás do palco. Geralmente, acontecia, em dias chuvosos, de alguns bêbados se alojarem da tempestade ali dentro e cinco minutos depois começarem a sapatear no palco de forma grotesca e sincrética, criando, assim, um evento humorístico que provavelmente só existia em Turmalina. O chopp do Rosa não era algo necessariamente bom, nem lá muito barato, porém sempre havia alguma batida de vodka apenas para passar o tempo, quando o estômago fizesse cara feia para o copo semi-cheio ou semi-vazio padrão alemão estacionado sobre a mesa.

Da janela larga e um pouco suja de gordura dava para ver as trincas nas calçadas e, eventualmente, alguém tropeçando nela, mas sempre levantado aos risos. Poucas vezes vi em Turmalina alguém que não soubesse sorrir de modo alegre e debochado, a menos que fosse algum mafioso (mas estes, geralmente, usavam gravatas ridiculamente coloridas, tornando-os fáceis de se identificar). Os carros eram do ano, e as pessoas se vestiam conforme a época, embora não como ditava a moda. E raramente via-se alguém acompanhado sem tagarelar.

Pagava a conta, saía e olhava os casais andando de mãos dadas, ou se pegando nos cantos. Era engraçado como alguns quase se engoliam durante os beijos, mas isso não parecia incomodar. Os moradores até diziam que era melhor alguns tropicalies (uma gíria local para malandro de praia que só vê praia no fim de semana mas que mesmo assim está sempre vestido para a finalidade de pisar na areia molhada) se engolindo do que aparecer algum triângulo amoroso francês com a baguete debaixo do braço -- "esses casais são a marca do nosso 'foda-se'".

Os tropicalies, entretanto, mesmo andando de bermuda ou saia, geralmente usavam chapéu tipo Panamá e óculos de sol RayBan, pois faziam questão de se integrarem à elegante paisagem.

A luz de turmalina exige um parágrafo a parte. Ali não ventava muito, e no calor era, às vezes, infernal. Eu morava em um flat (em um estilo, hoje, seria visto por uma construtora como um duplex de luxo) de janela grande para "a Martha Alves", aquela avenida que falei mais para cima, e via o sol entrar pela janela do mesmo jeito que via banhar a praia de uma cidade costeira. Faltava, porém, a brisa, e, eventualmente, a praia.

Acontece, entretanto, que as coisas mudavam. Eu mesmo mudei. Mudei para uma casa térrea, em uma transversal da Av. Martha, a Rua Tapioca Chinesa. Essa rua tinha um intenso tráfego de ônibus a diesel, articulados e convencionais. Era infernal dormir depois das 4 h AM, porém havia mais espaço e estava, na época, tentando morar com uma mulher um tanto quanto neurótica chamada Laura. Gostava dela, mas fui praticamente empurrado do flat para lá, pois a mocinha sabia bem que sozinho não iria sair do flat.

Laura conseguiu, com isso, me privar do pequeno escritório do flat, me jogando em um quarto para a rua com uma cama de casal e tudo do escritório aglomerado em volta. Não era possível usar o outro quarto (mais tranquilo, e com vista para o quintal) porque a sogra se instalara ali. Durante esse tempo, então, produzi pouco e também pouco observei. Quando menos me dei conta, tudo tomava uma forma metálica de alumínio contínuo e reluzente em direção ao céu.

Vi, então, que Turmalina virava uma Berrini. Deparei-me com o proprietário do Rosa fechando a casa e me informando que estava bem pago para viver sem restaurante para resto da vida, embora afirmasse que iria sentir saudades dos clientes. Os vidros altos e os entalhes na pedra das fundações e estruturas fôra substituído por prédios de brutal concreto ou de alumínio reluzente, de formas quadradas.

Aquilo era sufocante. Até o prédio em que tive meu flat estava, segundo falavam, em vias de ser vendido à Mendes Sá, a construtora mais famosa da cidade, na época.

Minha cabeça não processava mais dados ou informações. Tudo era espanto, fora de casa. E dentro, bem, acho que não tinha casa, afinal. Na calada da noite, botei meus livros favoritos, trabalhos, máquina de escrever e computadores no porta malas de minha banheira sobre rodas e mandei-me para o Bonfiglioli.

Havia morado lá durante bastante tempo. E, novamente, tudo mudara. É bem verdade que o traçado das ruas e vários conjuntos de casas eram basicamente os mesmos, mas a Av. Corifeu tinha, agora, três faixas em cada sentido e mais uma de estacionamento. Instalara-se um corredor de ônibus, no canteiro central da avenida, e os trólebus subiam em direção ao Terminal Vila Yara, em Osasco.

Sim, era bonito, os postes da fiação tinha design simples e moderno, mas sem serem espalhafatosos. Havia árvores grandes traçando sombra sobre a avenida. Mas aquilo não era mais meu bairro. Havia prédios -- ou melhor: caixas de fósforo empilhadas -- por todos os cantos da avenida, e a esquina com a Praça Elis Regina era, agora, marcada por placas indicando caminhos em direção à Raposo Tavares.

Fiz a conversão, entrei na praça. Agora, a praça tinha uma mão de cada lado, sendo canteiro de uma avenida. A avenida, então, continuava para onde havia um conjunto habitacional, em direção à Raposo. Vendo aquele trevo rodoviário, de longe, compreendi que muito do que conheci já não existia mais.

Entretanto, ainda via alguma vida lá. E os imóveis, embora simplórios e coalhados de apartementos pequenos, ainda representavam mais variedade e cores do que aqueles que se viam em Turmalina.

Me hospedei na casa de um amigo que morava por aquelas bandas e, como não ia lá há tempos, perguntei o que ocorria. Responde-me ele que aquilo tudo fôra consequência da mudança de zoneamento e alta demanda por parte das construtoras devido à construção de uma estação de metrô no Largo do Bonfiglioli.

Walfredo, esse meu amigo, ainda me disse que lá para cima até as ruas estavam irreconhecíveis, embora tudo fosse bonito e arborizado.

Conformei-me.

Aguardei pela noite. Fiquei a observar o movimento. Tudo era entra e sai dos prédios e tráfego entre Raposo e Corifeu. Às dez, tudo começou a silenciar. Só então dei de ombros, ri e notei que, no fundo, o bairro não perdera sua vocação suburbana e achei ali, em um dos maiores defeitos do bairro, a identificação com uma parte de mim e da minha vida.

Quiçá vivamos só dos defeitos!

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Realidade bagunçada

Há muito já precisava tirar o pó dessas teclas. E o pó dos caminhos do cérebro, entumecidos na lama da confusão. De um lado a realidade chapada, do outro a exacerbadamente surrealista. É, porém, assunto para outros textos, essa mazela. Uma divertida moça me lembrou do Notepad, à soleira dos portões do prédio da Uninove, na Barra Funda, onde, empurrado por quatro ventiladores fiz minha Fuvest; logo, precisei escrever. Vocês sabem, redação de vestibular não ganha prêmios literários, mas tudo bem: nem grandes escritores costumam ganhá-los, também.

Júlio de Junho Machado, em suas rondas pela cidade, descia a Avenida Pompéia. Tinha comprado o pão e matutava intermitentemente entre prazer próprio e a vida humana -- e por causa desses 'gaps', tinha tido inúmeros problemas para se organizar. Sua literatura vertera em surrealismo. Não que as formas necessariamente derretessem em sua mente -- o que era bem capaz de acontecer no calor de São Paulo --, podiam cogelar. Tanto faria, ele descrevia o mar a partir de uma torre onde só ele poderia subir.

Mas estávamos longe de Santos. E seus escritores, da mesma forma, bem longe do mar borbulhante que lhe reinava a alma. Seu apartamento na Cardoso de Almeida era pequeno, modesto e tinha uma janela para a rede aérea dos trólebus. E por ali via, entre uma e outra xícara de chá, o correr das alavancas dos elétricos em plena faísca, rumo a Machado de Assis. Entre um filme de Truffaut e um disco do Chet Baker, agitava algum Rolling Stones e, eventualmente, dormia dançando Gymnopedie.

Dançava com o ar e acordava fumando cigarro com o travesseiro. O sol tornava o cérebro de Júlio lento, mas, eventualmente, ele se levanta, contempla o cinzeiro, a janela e o travesseiro e começa a embaralhar as cartas de sua mente quase furando os discos de Satie. Sentia-se metido em um paletó e uma camisa de flanela, mas o sol de fora bate os trinta e Dali se torna realista. Teimava com a sua existência, como poderia não ser assim, Júlio?

De qualquer forma, a vida anima os ossos, principalmente em tempos de geladeira vazia e conta bancária zerada. E Júlio, especialista em química forense, precisava estar às dez em um local que visitaria durante dois dias, em duas rodadas de perguntas e diálogos rígidos de múltipla escolha. Vestibular para química, na Universidade Estadual de Vila Comercial. O dinheiro da garantia estava acabando, mas Júlio tinha modo particular de enxergar a sorte.

Então, abaixo de uma árvore, em seu primeiro dia de exame, fumava um Old Eight, cigarrete paraguaio. Drogado pelo alcatrão plantado em conserva de mictório reciclado, observou o horizonte uma, duas... dez vezes, até defrontar-se com o jeito desconjuntado e afetivo de uma antiga colega. Ana Letícia. Conversaram intermitentemente. E ao fim do exame, todos estavam ali. Júlio, entretanto, continuava fitando o horizonte e imitando Woody Allen entre uma frase e outra.

Júlio, como escritor, era um chato. Observava detalhes inconvenientes e, ainda por cima, tinha sagitário como ascendente de seu signo. Os convivas riam, e Júlio também, embora se corroesse sem saber se riam dele ou com ele. Eventualmente, seria, entretanto, convidado ao bar. Talvez não fosse a melhor das fortunas, porém não era do tipo que fugia de um ácido etílico.

No segundo dia, então, estava marcado o bar. Júlio saiu da prova, colocou seu óculos à lapela e sentou-se nas escadas do prédio. Pensara em esquecer tudo e voltar ao seu apartamento. Pensava à parte. Não que fosse contrário ou a favor de seus novos amigos militantes, porém pensava em fervilhar menos, já que tão poucas certezas tinha para empunhar bandeiras.

Uma moça simpática, de olhos azulados e doces o recebeu na roda de conhecidos que antecedia o bar. Era Helena. Divertidíssima que era, ria-se dos comentários sarcásticos de Júlio, que apesar de ser bem recebido, sentia que seu dial não andava na estação certa. Eventualmente "meio-contava" uma história dentre o burburinho. Quase quieto, fôra ao bar, então.

Junho Machado conheceu seu lado radical, embora apenas durante as retóricas apoiadas pelo cigarro entre os dedos. Gostava de ouvir, e como ouvinte, anotava em sua memória o que mais pudesse interessar a si mesmo e à resolução de sua confusão, eventualmente guardando algo mais, se o dinheiro apertasse tanto ao ponto de ser necessário escrever um livro de auto-ajuda.

Sabe-se lá como, Junho amanheceu em sua cama. Apagou os acontecimentos, mas lembrou das principais linhas de seu caderno mental. Tratou de articula-las em uma obra de arte hermética pós-moderna e desafiadora aos padrões linguísticos. Enviou o resultado final a sua editora, Karine Ludovyko e seu amigo escritor, Alberto Tonyk.

Karine trouxe-o ao céu. Em sua carta em resposta, fez Júlio beija-la na boca com palavras doces e incentivos. Uma pena que os encontros pessoais fossem uma troca de conhecimentos sobre lojas de roupa e as experiências pessoais -- de Karine, claro. Ela elogiou-o e prometeu novamente a coluna que Júlio aguardava há sete anos no jornal do bairro.

Tonyk, entretanto, trouxe-o ao inferno e o fez pegar o elevador para a terra. Dizia em termos censurados, porque senão o politicamente correto acabaria por me censurar o texto todo, que as figuras coloridas navegando em um céu de matiz variável e infinito era digna de desfilar domingo na Av. Paulista e que se Beatles era referência, era bom esquecer a literatura e virar músico. Pôs-se, no final da correspondência, a revirar a semântica de cada literato até levar Júlio a um sono profundo de pesadelo garantido.

Era, porém, comum. Alberto, ao tomar cerveja com Júlio normalmente era calmo e sarcástico. Sua paciência oriental permitia suportar as lamúrias quase femininas de Júlio, quando este tomava um fora. Só que Alberto, quando lia, esperava encontrar James Joyce, pois, como dizia, se quisesse ler sessão da tarde em texto, compraria Paulo Coelho.

O equilíbrio era estonteante. Karina o levava ao olimpo dos escritores e Alberto ao inferno dos jornalistas contemporâneos. Com isso, se tornava barata tonta prensada entre dois extremos. Poderia se defender? Não. O que defender, então?

O tempo passou. Júlio por pouco não passara e agora estava novamente trajado de policial civil, caçando pedaços de ossos e pele em cenas grotescas. Seu estômago desde muito cedo treinou-se para tal, já que em sua época Menudos era moda na TV. Não se reprimiu e entregou três relatórios de cena de crime em menos de uma semana. Deu um tempo na máquina. Arriscava linhas tortas, mas acabava sempre descrevendo a rotina do embalsamento dos mortos.

Achou um caminho, porém. Não queria defender a passagem zero para os ônibus da cidade ou a democratização no uso do escorregador. Achava isso muita responsabilidade e incompatível com seu modo leviano de ver o mundo. Certa vez iniciara uma campanha em prol do retorno do jornal do bairro às maiores bancas. Uma das poucas causas maiores que sua casa, mas largou-a, depois, na mão de estudantes e moradores mais inflamados. Seu caminho, então, foi defender a vida como ela pode ser vivida.

Não queria mais saber dos padrões. Fazia um estilo de mistureba, de terninho e camisa regata adaptada, na maior feijoada adaptada ao clima tropical, lançava seus comentários sarcásticos e sua visão pessimista, mas absurda e hilária do mundo. E achou em seu defeito o modo mais improvável de conquistar as pessoas. Lembrou de quando conversara com Helena. Afinal, na síntese, ainda era reclamão, mas ao menos fazia com que seus interlocutores rissem.

Conformou-se com o fato de que as pessoas preferem viver de risadas. E quem pode culpa-las? Já se afundam em cerveja quando sofrem perdas materiais, morais. Se descuidam quando perdem o rumo. E tal sucede a todos aqueles animais engravatados, arcados e de cara fechada. Por que teríamos evoluído, se fosse para ser assim? Deuses nos deram nessa evolução laboratorial um sorriso e um olhar poderoso, que o usemos enquanto é tempo.

sábado, 4 de janeiro de 2014

E, com uma dissertação furada, comemoro meu post de número duzentos

Cidade. Ruas, avenidas, carros e jazz. Familiar? Ainda procuro figurar. Dentre tanta confusão podia imaginar Júlio de Junho Machado entre um semáforo e outro com as mãos metidas no bolso. Fazia mais do que só fitar em vazio as grades dos edifícios e veículos. Pensava algo mais.

Quem o conhecia, facilmente te contaria, durante uma festa regada a discoteca e golas estendidas pela lapela dos blazers acinturados, que sucedia a Júlio de Junho era uma quebra de paradigma. Parecia que o passado o assombrava com regular frequência. Um escritor arrependido, amargado. Culto como algum Marcola.

De qualquer forma, seus vizinhos podiam jurar ouvi-lo berrar, por vezes, "não toque nessa porta" ou "João da Bomba, tu me pagas" -- o emprego correto da segunda pessoa dependia da intensidade da crise. Da Bomba poderia ser um discotequeiro das baladas de esquina daqueles remotos anos oitenta ou algum criminoso. Pelo jeito pecava por se entregar às noites regadas a Disco e cocaína, ou às tentações do poder conferido pela pólvora.

Por outro lado, supunham alguns que só se perdia nos olhos de Maryan Tonyk, uma húngara de família árabe que conhecera fazendo prova na PUC. Doce mas matadora, não poupava um nas ruas do Jardim Éfeso. Ela costumava andar de saiote preto às manhãs, na Avenida Ilium, exibindo um sorriso bobo, mas preciso. Perdeu-se na escola de artes, mas fez de Júlio seu escritor e assim estava feita.

Enfim, de uma forma ou de outra, Júlio estivera ou está detrás das grades. Se não se arrependera de dançar ao ritmo frenético de "Never Gonna Give You Up", acabaria cantando a música sozinho na rua, pensando nos olhos e no busto de Maryan. It goes, it comes. Júlio é como todos nós.