Há muito já precisava tirar o pó dessas teclas. E o pó dos caminhos do cérebro, entumecidos na lama da confusão. De um lado a realidade chapada, do outro a exacerbadamente surrealista. É, porém, assunto para outros textos, essa mazela. Uma divertida moça me lembrou do Notepad, à soleira dos portões do prédio da Uninove, na Barra Funda, onde, empurrado por quatro ventiladores fiz minha Fuvest; logo, precisei escrever. Vocês sabem, redação de vestibular não ganha prêmios literários, mas tudo bem: nem grandes escritores costumam ganhá-los, também.
Júlio de Junho Machado, em suas rondas pela cidade, descia a Avenida Pompéia. Tinha comprado o pão e matutava intermitentemente entre prazer próprio e a vida humana -- e por causa desses 'gaps', tinha tido inúmeros problemas para se organizar. Sua literatura vertera em surrealismo. Não que as formas necessariamente derretessem em sua mente -- o que era bem capaz de acontecer no calor de São Paulo --, podiam cogelar. Tanto faria, ele descrevia o mar a partir de uma torre onde só ele poderia subir.
Mas estávamos longe de Santos. E seus escritores, da mesma forma, bem longe do mar borbulhante que lhe reinava a alma. Seu apartamento na Cardoso de Almeida era pequeno, modesto e tinha uma janela para a rede aérea dos trólebus. E por ali via, entre uma e outra xícara de chá, o correr das alavancas dos elétricos em plena faísca, rumo a Machado de Assis. Entre um filme de Truffaut e um disco do Chet Baker, agitava algum Rolling Stones e, eventualmente, dormia dançando Gymnopedie.
Dançava com o ar e acordava fumando cigarro com o travesseiro. O sol tornava o cérebro de Júlio lento, mas, eventualmente, ele se levanta, contempla o cinzeiro, a janela e o travesseiro e começa a embaralhar as cartas de sua mente quase furando os discos de Satie. Sentia-se metido em um paletó e uma camisa de flanela, mas o sol de fora bate os trinta e Dali se torna realista. Teimava com a sua existência, como poderia não ser assim, Júlio?
De qualquer forma, a vida anima os ossos, principalmente em tempos de geladeira vazia e conta bancária zerada. E Júlio, especialista em química forense, precisava estar às dez em um local que visitaria durante dois dias, em duas rodadas de perguntas e diálogos rígidos de múltipla escolha. Vestibular para química, na Universidade Estadual de Vila Comercial. O dinheiro da garantia estava acabando, mas Júlio tinha modo particular de enxergar a sorte.
Então, abaixo de uma árvore, em seu primeiro dia de exame, fumava um Old Eight, cigarrete paraguaio. Drogado pelo alcatrão plantado em conserva de mictório reciclado, observou o horizonte uma, duas... dez vezes, até defrontar-se com o jeito desconjuntado e afetivo de uma antiga colega. Ana Letícia. Conversaram intermitentemente. E ao fim do exame, todos estavam ali. Júlio, entretanto, continuava fitando o horizonte e imitando Woody Allen entre uma frase e outra.
Júlio, como escritor, era um chato. Observava detalhes inconvenientes e, ainda por cima, tinha sagitário como ascendente de seu signo. Os convivas riam, e Júlio também, embora se corroesse sem saber se riam dele ou com ele. Eventualmente, seria, entretanto, convidado ao bar. Talvez não fosse a melhor das fortunas, porém não era do tipo que fugia de um ácido etílico.
No segundo dia, então, estava marcado o bar. Júlio saiu da prova, colocou seu óculos à lapela e sentou-se nas escadas do prédio. Pensara em esquecer tudo e voltar ao seu apartamento. Pensava à parte. Não que fosse contrário ou a favor de seus novos amigos militantes, porém pensava em fervilhar menos, já que tão poucas certezas tinha para empunhar bandeiras.
Uma moça simpática, de olhos azulados e doces o recebeu na roda de conhecidos que antecedia o bar. Era Helena. Divertidíssima que era, ria-se dos comentários sarcásticos de Júlio, que apesar de ser bem recebido, sentia que seu dial não andava na estação certa. Eventualmente "meio-contava" uma história dentre o burburinho. Quase quieto, fôra ao bar, então.
Junho Machado conheceu seu lado radical, embora apenas durante as retóricas apoiadas pelo cigarro entre os dedos. Gostava de ouvir, e como ouvinte, anotava em sua memória o que mais pudesse interessar a si mesmo e à resolução de sua confusão, eventualmente guardando algo mais, se o dinheiro apertasse tanto ao ponto de ser necessário escrever um livro de auto-ajuda.
Sabe-se lá como, Junho amanheceu em sua cama. Apagou os acontecimentos, mas lembrou das principais linhas de seu caderno mental. Tratou de articula-las em uma obra de arte hermética pós-moderna e desafiadora aos padrões linguísticos. Enviou o resultado final a sua editora, Karine Ludovyko e seu amigo escritor, Alberto Tonyk.
Karine trouxe-o ao céu. Em sua carta em resposta, fez Júlio beija-la na boca com palavras doces e incentivos. Uma pena que os encontros pessoais fossem uma troca de conhecimentos sobre lojas de roupa e as experiências pessoais -- de Karine, claro. Ela elogiou-o e prometeu novamente a coluna que Júlio aguardava há sete anos no jornal do bairro.
Tonyk, entretanto, trouxe-o ao inferno e o fez pegar o elevador para a terra. Dizia em termos censurados, porque senão o politicamente correto acabaria por me censurar o texto todo, que as figuras coloridas navegando em um céu de matiz variável e infinito era digna de desfilar domingo na Av. Paulista e que se Beatles era referência, era bom esquecer a literatura e virar músico. Pôs-se, no final da correspondência, a revirar a semântica de cada literato até levar Júlio a um sono profundo de pesadelo garantido.
Era, porém, comum. Alberto, ao tomar cerveja com Júlio normalmente era calmo e sarcástico. Sua paciência oriental permitia suportar as lamúrias quase femininas de Júlio, quando este tomava um fora. Só que Alberto, quando lia, esperava encontrar James Joyce, pois, como dizia, se quisesse ler sessão da tarde em texto, compraria Paulo Coelho.
O equilíbrio era estonteante. Karina o levava ao olimpo dos escritores e Alberto ao inferno dos jornalistas contemporâneos. Com isso, se tornava barata tonta prensada entre dois extremos. Poderia se defender? Não. O que defender, então?
O tempo passou. Júlio por pouco não passara e agora estava novamente trajado de policial civil, caçando pedaços de ossos e pele em cenas grotescas. Seu estômago desde muito cedo treinou-se para tal, já que em sua época Menudos era moda na TV. Não se reprimiu e entregou três relatórios de cena de crime em menos de uma semana. Deu um tempo na máquina. Arriscava linhas tortas, mas acabava sempre descrevendo a rotina do embalsamento dos mortos.
Achou um caminho, porém. Não queria defender a passagem zero para os ônibus da cidade ou a democratização no uso do escorregador. Achava isso muita responsabilidade e incompatível com seu modo leviano de ver o mundo. Certa vez iniciara uma campanha em prol do retorno do jornal do bairro às maiores bancas. Uma das poucas causas maiores que sua casa, mas largou-a, depois, na mão de estudantes e moradores mais inflamados. Seu caminho, então, foi defender a vida como ela pode ser vivida.
Não queria mais saber dos padrões. Fazia um estilo de mistureba, de terninho e camisa regata adaptada, na maior feijoada adaptada ao clima tropical, lançava seus comentários sarcásticos e sua visão pessimista, mas absurda e hilária do mundo. E achou em seu defeito o modo mais improvável de conquistar as pessoas. Lembrou de quando conversara com Helena. Afinal, na síntese, ainda era reclamão, mas ao menos fazia com que seus interlocutores rissem.
Conformou-se com o fato de que as pessoas preferem viver de risadas. E quem pode culpa-las? Já se afundam em cerveja quando sofrem perdas materiais, morais. Se descuidam quando perdem o rumo. E tal sucede a todos aqueles animais engravatados, arcados e de cara fechada. Por que teríamos evoluído, se fosse para ser assim? Deuses nos deram nessa evolução laboratorial um sorriso e um olhar poderoso, que o usemos enquanto é tempo.
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