Setembro de 1982. Era branco como papel, como mussarela. Seus pais, joviais. Nascia o pequeno Jorge. Já embrulhado nos clássicos progressivos e ao cheiro clássico, o preferido dos médicos, talvez.
Setembro de 1983. O tempo passara rápido, e Jorge já tinha um ano de idade. Mostrava habilidade com o ábaco, e, dois anos depois, já sabia fazer contas de adição melhor que seus pais.
Jorge aprendia a tocar guitarra com seu pai, ao som lento e pouco reflexivo, típico da década anterior. Mas Jorge tossia, não se sentia bem. Com o tempo começara a tocar Mozart em sua guitarra, porém, não sabia o que estava tocando. Ouvira em qualquer lugar, qualquer som. Com a velha pentatônica e um pouco de improviso, tocava a quinta sinfonia.
O pai parou a mãe, que fazia um colar de contas cem por cento sustentável, e a chamou para ver o garoto tocando música. Seu pai, Antônio, aos seus vinte e oito anos de idade, não acreditava... Como o garoto sabia matemática e ainda tocava Mozart em sua guitarra? Aos doze anos, Antônio não conseguia tirar mais do que cinco notas de Beethoven. Sua mãe, Glória, que era hippie e acreditava que tudo de que precisamos é amor, não se surpreendeu, apenas observou, "Amor, coloque Young Lust para tocar? ".
Era o primeiro dia na escola. Jorge escreveu o "A" não menos que três vezes e não se conformava na demora de seus colegas em fazer a letra. A primeira aula acabava e garoto já tinha escrito o alfabeto inteiro... três vezes. A professora não deixou por menos. Em um ato extremamente fino, singular, grande e expressivo, ela diz: "Jorge... "
"... você não é diferente de ninguém", dizia a coordenadora. Ele não entendia bem, sabia que havia procedido de forma incorreta, sabia que não estava acima da lei, das regras, mas questionou o diferente. "Mas, dona Amélia, então sou igual ao Carlinhos?". "O Carlinhos? Por quê?", questionou a diretora. "Não sei. A senhora diz que não sou diferente de ninguém... Mas o Carlinhos não sabe escrever uma frase, e eu sei. ". "Ah, fique quietinho aí, que depois resolvemos isso, você tem que aprender a ser modesto. ". "Mas, dona Amélia... O que é modéstia?". "Seus pais te explicam. ".
Antônio e Glória não tinham dicionário, afinal, dicionário é um elemento elitista, conservador, e careta. Mas Jorge lhes aporrinhara tanto, que compraram-lhe um. Era um empoeirado dicionário, muito antigo, direto das pratileiras de um sebo. Uma semana depois, sua vizinha, dona Antônia, viúva de seu Ademar, um encebado poeta fracassado, depositava vários livros fora de casa. Jorge correu e indagara: "Ora, você detesta o conhecimento?". "Moleque, sai fora daqui... Isso é problema meu". "Dona Antônia, em memória de seu Ademar, tudo isso é meu, agora. ". "Ótimo, menos lixo em minha casa, quem vive de passado é museu", resmungou Antônia em um velho clichê suburbano.
"Todos vocês. Todos mesmo, que estão nessa sala. Vocês pagam pelo colégio? Certo?". "CERTO!". "Lamento informar-vos. Mas vocês são burgueses. Elitistas. Ruim, não?". "Claro!". Jorge estava com o braço doendo. Seu braço se estendia desde o começo da aula, como se fosse uma antena de TV, que vez ou outra era abatida pelo vento, mas, faltando cinco minutos para o final, o professor o deixa falar. "Mas, professor, como seria se os dominadores não existissem? Afinal, se os Romanos e Gregos não existissem nó... ". "MUITO bem, Jorge, você diz isso porque lhe colocaram isso na cabeça. Aqui precisamos ser mais críticos, veja as minhas aulas, por exemplo. Enfim, classe, estou indo, até sexta, e não esqueçam de pegar as tarefas no xerox".
"Seu Ademar escrevia bem", observara Jorge, "o uso da linguagem que ele fazia é espetacular, para ele, as palavras tinham só significado, tinham som, tinham harmonia.". "Ele não pagava as contas direito. Tenho até hoje, três mil quinhentos e sessenta e sete reais em dívidas", retrucava dona Antônia. Diante à isso, Jorge pensou: "Que bela mentalidade, acho que vou ser assim quando crescer, afinal, o conhecimento humano deve estar todo no banco, não é? ".
Jorge prestou vestibular, passou de primeira. Seus amigos não acreditavam, mas resmungavam quando ele dizia: "Eu sabia que ia passar, eu sou bom nessa área, não sou?". "É", seus amigos respondiam secamente. Com o tempo, o garoto Jorge, se tornou um adulto.
"Jorge Cipriani Schermatto". "Okay, senhor. Você deve receber seu CPF por correio nos próximos dias". "Obrigado", replicou Jorge. Agora, na universidade, Jorge só batalhava para pagar as contas. Seus pais o ajudavam, mas Jorge queria paz, não queria saber da roda verde, nem do aroma natural de sua casa. Escrevia, enfurnado em casa, ouvindo Brahms. Saía e não entendia porque as pessoas grudavam nos ônibus cheios. Não entendia porque não conseguia comprar um jornal depois da meia-noite. Não entendia porque a cidade morria.
Alias, entendia, fingia não entender. Fingia ao olhar das pessoas, pessoas as quais entendiam o fingimento e não profundo entender por trás do fingimento. Ivoluntáriamente oculto por trás de uma barreira de ironia e sarcasmo, espantava as pessoas de âmago sensível e irritava os mais revoltados. "Será mesmo que não precisamos de educação? Sério, não entendo porque precisamos, afinal, todos nós já nascemos sabendo. A maternidade é uma grande escola, grande geração! Iluminada, não acham?".
Um dia, enquanto passava na rua... Lhe atiraram um livro de Nietzsche na cabeça. Xingou, mas como era um voraz leitor, leu. Agora estava na universidade, fazendo seu mestrado e ensinando as crianças. "Como eram maus, os dominadores. ". Sim, era um dominador. Ele mudou... É a história que lhe fez justiça, não é mesmo?
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