sábado, 22 de julho de 2017

Campo Minado

Alfredo reside na rua dos Trilhos. É italiano de 1/4 do coração e habitante da Mooca por qualquer motivo. Quando não está perdido com os olhos nas copas das árvores ou perdido nas linhas da randômica enciclopédia, perambula inquieto as redondezas do ponto de ônibus. Enquanto as obras da casa ao lado jogam areia ao ar e o sol faz-se sentir mais do que qualquer um gostaria, o ônibus já atrasa vinte minutos. E lá está a cabeça de nosso Alfredo em plena atividade: toda a massa encefálica empenhada na nervosa e delicada tarefa de xingar a empresa. Mas da boca? Nem um tímido sussurro. De tão introvertido, pede licença até ao cachorro de rua, quando este lhe impede a passagem.

Chegando em casa, observa o telefone por cinco minutos. O aparelho permanece mudo. E a fita da secretária eletrônica de som gravado só apresenta o ruído próprio da fita cassete virgem. Só então ocorre a Alfredo jogar o paletó e a pasta sobre o sofá e lavar as mãos. É uma sexta-feira. As entusiásticas risadas do bar a uma quadra dali fazem-se ouvir em alto e bom som mesmo com a janela do apartamento ainda fechada. Além do ruído, entra pela janela a luz mortiça da rua e Alfredo, já de mãos limpas, senta-se ao sofá. Está só. Somente só.

A situação não é nova. Era apenas um dos milhares de finais de semana consecutivos em que a única companhia de Alfredo era seu próprio corpo não na melhor das formas. A secretária eletrônica, de novo checada, continuava limpa. Encarou então o relógio, por bons dois minutos. Depois perfilou mentalmente os livros na prateleira, puxou um volume dos Pensadores. À tépida luz do abajur, leu uma página, olhou para o teto, amargou alguns pensamentos e deixou o livro de lado. Apeando a agenda telefônica, com o gancho já apoiado pelo ombro, discou qualquer telefone. Era o de Beatriz. Longas três tentativas. Todas sem resposta. Lembrou então que Beatriz deixará de atendê-lo havia uma semana. Alfredo não sabia exatamente o porquê. Telefonou então a Luísa, com quem conversava pela segunda vez, ensaiando toda o humor aprendido com as séries de TV e os filmes de Woody Allen.

Não muito tempo depois, já extenuado pelo esforço unilateral em criar assuntos, mandou um beijo, despediu-se e desligou. Foi dormir. No dia seguinte, Luísa não mais o atenderia. Era este também um episódio tão consecutivo quanto os finais de semana solitários. Parecia um jogo de campo minado. Mesmo quanto tudo parece ir muito bem, a poucas casas da vitória, surge traiçoeira uma mina. Como era sábado, Alfredo perambulou pelas ruas da Móoca, fumando cigarros paraguaios. Era fim de mês e a conta bancária não mentia a respeito disso. Se ao menos tivesse escolhido uma carreira melhor... Não, melhor não. Vivamos aleatoriamente enquanto a vida segura o leme.

Nada de relevante, não obstante, aconteceu. E já é quarta. Dois maços de cigarro paraguaio depois, e apenas dois litros de cerveja – não dá para exagerar, né?! -- Alfredo saíra para almoçar. Seu trabalho pouco importa, afinal, basta que se diga que fazia o suficiente para um ser deveras preguiçoso. É de se presumir, então, que não batia cartão entre entrada e saída para o almoço. Alfredo toma seu tempo, então, e vai ao boteco perto da companhia. Ali fizera um social com várias moças. Fez-se de lacônico, trocou algumas piadas e anotou alguns telefones. Passou a fingir pressa para acelerar o processo e poupar vocábulos. Na verdade, eram mais três de um estoque aparentemente interminável de amigas de um amigo, que as “arranjou” para Alfredo.

A história, no entanto, repetia-se. Alfredo perguntava sobre como estava a vida, se gostavam de bolo, pastel ou pipoca, qual era o sabor favorito de pizza. E achava no meio período lacuna para piadas. As primeiras conversas tendiam a ser as melhores. Mas sentia que uma ou outra palavra, por vezes, vertia conversas boas em monólogos de sua parte, até a hora de desligar. E, então, não mais obtinha qualquer retorno. Há seis meses, desesperado, telefonou incessantemente a algumas das mulheres perguntando sobre qual teria sido sua falha. As poucas que responderam exercitaram-se prodigiosamente em dar as mais vagas respostas.

Perdido, então, fizera-se de indiferente. Era, porém, tarefa árdua. Traído por sua inquietude usual, empolgava-se e lá estava ele, cuspindo vocábulos. A cada conversa, um assunto ou frase murchava o interesse do outro lado da linha. Sentia então a esperança esvair-se, as paixões apagarem-se e a energia vital drenar-se. O que fez Alfredo, então? Repetiu a dose. E repete.

Às vezes adiciona uns cigarros, às vezes o desespero pela vida complicada. Mas sempre fiel à aleatoriedade e ao conforto mínimo que consegue obter. E vive em sua mente aventuras marcadas pelas primeiras páginas dos livros em sua estante, citações esparsas e imagens de suas sérias favoritas. Ali não existe paletó rasgado, e a Federação de Planetas Unidos não usa mais dinheiro. Cá, no entanto, finge acreditar na religião da pizza e depositar sua fé nos litrões com pastel. Mera cena. Não suspeita Alfredo, no entanto, o quão canastrão é.

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