domingo, 1 de maio de 2016

Técnico III (ou IME I)

Há muito pareço estar apartado de meus velhos hábitos. Escrevia frases compridas como fios de macarrão. Os textos eram como spaghetti. O que, porém, terá mudado tanto? Duvido ter havido mudanças significativas, retive minha essência. Tardes se passaram, o sol se pôs milhares de vezes. Às vezes um tépido pôr do sol nublado, às vezes contrastando concreto enegrecido com céu ardente. Milhões de pessoas passaram, carros desceram, subiram. O caos e a confusão perduraram, muitas vezes. Houve paz momentânea. Mas somos paulistanos e a cidade não para jamais.

Esses tempos, porém, ando na mesma daqueles dias longínquos. Sento-me ao computador, abro as linhas de código e vejo se a elas dou melhor sentido do que aquele dado aos meus pensamentos. Num ato pragmático quem sabe não faça daquele código confuso a salvação para a ordem furada desses neurônios? A conjuntura agora é um pouco outra, é verdade. Sento-me ao meu lugar nas aulas de lógica de programação ainda coçando os olhos de sono. Não vejo o sol se por enquanto dou um jeito no Pascal, mas sim o sol raiar enquanto procuro dar sentido a algumas linhas de código C.

Se algo me dá saudade é daquele sintetismo único expressando os problemas da vida imediata. Azedo como Álvaro de Campos, assertivo como um pré-socrático. As imponentes frases impunham uma crítica afiada sobre tudo o que se vivia. Mas que adiantou? Quem é que tira margarina com peixeira?

A vida seguiu seus impulsos. Parte dela virtualizou-se, outra vive-se nos raros momentos de paz na urbe. Mas também não se ignore: no frenesi urbano há vida também. Cada indivíduo opera parte dessa máquina e gritar pela racionalidade ampla, geral e irrestrita parece tentador, mas é jacobinismo e impossibilidade combinados. Afinal, haverá uma consciência coletiva possível?

Juntei-me ao que via como algoz. As granadas de tela luminosa, os torpedos de SMS, as balas de mensagens instantâneas, tudo isso já faz parte do arsenal. Entrei para a guerra, mas luto com a vida e pela vida. Não esta breve e biológica, mas a grande vida humana. Temos nossas causas, nossas razões. Nem tudo se casa, mas a graça está no ponto fora da curva, despojado do plano cartesiano e suas razões quadráticas, cúbicas.

Dizem-me que o computador é cartesiano. Ele é. Por isso não é humano, mas é humano o suficiente enquanto dentre as linhas eletroeletrônicas há humanos trocando convivência e empatia em mensagens e sorrisos emulados. Bits sem vida são só bits sem valor. Deem-me trinta planos cartesianos: em cada um dou uma série de pontos. Os pontos são em si só matéria, mas dentro de minha mente ganham forma. E nisso a quarta dimensão metafísica entrega vida, variação. A forma a apreender a sequência aparentemente aleatória dos signos matemáticos pode não ser a mesma em todos, e nisso está a grande variação do mundo.

Livraria

Este texto começou a ser escrito em 2011, o finalizo agora, quatro anos depois, em homenagem a N. Neme

Cheiro de papel, luz mortiça. Estou em um porão de uma livraria, por assim dizer. Local feito comercial por um feliz (ou infeliz) acaso. É um lugar estranho para se estar a uma hora dessas (seis da tarde, enquanto escrevo). Porém, fui conduzido para cá em troca de bolachas. As mães não dizem para não se falar com estranhos? É, falam, mas quem disse que todos os estranhos são larápios?

Pois não são. Ao menos, sempre espero e nunca deixo de acreditar em uma ideia de que há empatia, ainda, entre nossos congêneres. Mas esta pessoa já não é, há muito, estranha. Dentre os dias nublados e ensolarados é uma constante encontrá-la, de sorriso aberto e animação incomparável, especialmente às 11h30 da manhã, quando o enfado das aulas assistidas mistura-se ao cansaço frente as próximas cinco, seis horas de técnico que em seguida virão.

E essa pessoa já foi estranha um dia. Arrisquei-me a corrigir algumas linhas de código e trocar ideias sobre a vida. Ganhei compreensão, abraços e biscoitos. Eu sei, a vida não é perfeita e tudo tem seu limite. Mas que poderia eu almejar? Em todos esses anos de amores platônicos e amizades incompletas, o plano de mordiscar alguns biscoitos enquanto discute sobre a literatura variada daquele porão, ali na Livraria da Villa, pareceria a joia da coroa.

Assim foi. Mas, ah, essa mania, passada à pena, de colocar tudo no paradigma da troca, do comércio e da balança! Quanto tempo demorarei para entender que não há valor na empatia e a amizade não se mede em ações simétricas. Temos os arranca-rabos e os bons momentos e a questão não é equilíbrio para todo o espaço e tempo – estes meros entes fenomenológicos. Temos as conexões e ali estarão, resistentes ao frio, calor, cidade, campo, praia ou qualquer coisa. Está na metafísica e não na esfera do físico, existente e corruptível.

Então, só me resta o quantitativo imensurável pela matemática dando os níveis da amizade. No fim, como se vê, comprei alguns livros. E a coincidência é engraçada: quem sabe não até me ajudaram a entender melhor essa tal de amizade? Não é estranho estar na livraria às seis, sete ou duas. Estranho é estar só. Esse “estranho”, sim, o mais desgraçado de todos.

Pelas calçadas rachadas da Vila Madalena, rachando espaço com jovens curtindo a sexta e observando o sobe e desce dos ônibus, o movimento dos bares, é que estivemos curtindo a cidade a um som de jazz, estivemos na mesma frequência do dial. Mas agora estamos na livraria. E é como o próximo som da rádio. Dançamos juntos, comemos biscoito. E se esta estranha fora larápia, só o pôde sê-lo por roubar um pouco dessa minha solidão.

E se depois da livraria mudamos de estação, trocamos berros... Bem, há músicas e músicas. Gosto de uma, você de outra. Muitas vezes, ambos gostamos. Mas é irrelevante, saltamos para a próxima conexão, trocamos um abraço. As folhas caem, a chuva lava as ruas, pegamos o trem cheio. A cidade vai passando pelas janelas, trocando os brilhos envidraçados pelas milhares de luzes pontuais. Eis que tal estranha faz-me descer do pedestal dos pragmatismos e cartesianismos. Olho para o vidro e vejo nosso reflexo, e o reflexo da cidade, de tudo. O mundo é grande e estamos nele, mas nos achamos. E de modo ou de outro a vida segue, mas não sozinhos a ela iremos.