quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Kolakowski: "O que restou do socialismo?"

Na falta de minhas próprias reflexões, trago ao meu blog o trabalho de um notável cientista político polonês, Leszek Kolakowski, habilmente traduzido para o português por Gil Pinheiro. Deixarei que a introdução e o texto falem por si. Infelizmente, o texto caiu mal na formatação limitada do blog, gostaria de corrigir o problema, mas optei por deixar assim a fim de não macular uma tradução de tal qualidade.

Introdução à tradução brasileira

A CADA UM DOS MEUS AMIGOS QUE AINDA TATEIA SOB AS SOMBRAS DA ESQUERDA SEM SOL

Você já leu o pensador polonês Leszek Kolakowski? Este ensaio foi publicado por ele em 1995 – 14 anos portanto antes da sua morte, em 2009. Suas ideias tiveram grande repercussão depois da queda do muro que decretou o “dream is over” do socialismo totalitário. No entanto, ainda existe muita gente que nunca ouviu falar dele no Brasil. Uma pena.Traduzo-o aqui, do inglês, em parte para tentar preencher um naco dessa lacuna. Em parte para ajudar os meus amigos a seguir, a caminho da luz, um autor cujas convicções de origem socialista souberam resistir à tentação da redenção pela tirania. É longo, mas vale a pena...

Gil Pinheiro, 1/09/2015


O que restou do socialismo?

Leszek Kolakowski, outubro de 2002

Tradução: Gil Pinheiro

Karl Marx – mente poderosa, homem sapientíssimo e bom escritor alemão – morreu há 119 anos. Viveu na idade do vapor. Nunca em sua vida viu um automóvel, um telefone ou uma lâmpada elétrica, para não mencionar dispositivos tecnológicos posteriores. Seus admiradores e seguidores diziam – e alguns ainda o fazem – que isso não tem importância e que seus ensinamentos ainda são perfeitamente relevantes para o nosso tempo, pois o sistema que ele analisou e atacou – o "capitalismo" – ainda prevalece. De que ainda vale a pena ler Marx não resta dúvida. A questão, todavia, é outra: será que sua teoria explica alguma coisa sobre o mundo em que vivemos ou fornece raspaldo para previsões? A resposta é não. Outra questão é se suas teorias, um dia, foram úteis ou não. E aqui a resposta é, obviamente, sim: elas tiveram muito sucesso como um conjunto de slogans propostos para justificar e enaltecer o comunismo e a escravidão que, inevitavelmente, comporta.

Ao indagar sobre o que essas teorias explicam ou o que Marx descobriu, podem-se questionar apenas as ideias específicamente colocadas por ele, e não banalidades do senso comum. Não deveríamos, por exemplo, menosprezar Marx, atribuindo-lhe a descoberta de que, em todas as sociedades não-primitivas, existem grupos sociais, ou classes, com interesses conflitantes, que os levam a lutar uns contra os outros. Isso já era conhecido dos historiadores antigos. Nem Marx nunca reivindicou tal descoberta e, como ele próprio escreveu, em carta de1852, a Joseph Weydemeyer, não foi ele quem descobriu a luta de classes; só quem provou que ela conduz à ditadura do proletariado, que, por sua vez, conduz à abolição das classes. Onde e como, porém, ele "provou" tal grandiosa afirmação em seus escritos anteriores a 1852 é impossível dizer. “Explicar" algo significa subsumir eventos ou processos a leis; mas "leis", no sentido marxista, não são a mesma coisa que leis para as ciências naturais, que as entende como fórmulas que afirmam que, em condições bem definidas, fenômenos bem definidos sempre ocorrem. O que Marx chamou de "leis" são tendências históricas. Não há, portanto, distinção clara, em suas teorias, entre explicação e profecia. Além disso, ele acreditava que o significado do passado e do presente só pode ser entendido com referência ao futuro, que ele alegava conhecer. Logo, para Marx, somente o que não existe (ainda) pode explicar o que existe. Embora deva-se acrescentar que, para Marx, o futuro existe, sim, de uma forma peculiar, hegeliana, ainda que seja incognoscível.

Ocorre, porém, que todas as profecias importantes de Marx se revelaram falsas. Primeiro, ele previu a crescente polarização das classes e o desaparecimento da classe média em sociedades baseadas na economia de mercado. Karl Kautsky, corretamente, ressaltou que, se esta previsão estivesse errada, toda a teoria marxista ruiria por terra. E é evidente que esta previsão estava errada, uma vez que o que se verifica, na verdade, é o contrário. As classes médias estão crescendo, ao passo que a classe trabalhadora, tal como definida por Marx, tende a diminuir nas sociedades capitalistas, no bojo do progresso tecnológico.

Em segundo lugar, ele também previu o empobrecmento, não só relativo, mas absoluto, da classe trabalhadora. Essa previsão revelou-se um erro no decorrer de sua própria vida. Vale lembrar que na segunda edição de “O Capital”, ele atualizou vários índices e estatísticas, mas não os relacionados com os salários dos trabalhadores. Esses números, se atualizados, desmentiriam sua teoria. Nem o mais doutrinário dos marxistas ousou agarrar-se a essa previsão, obviamente falsa, nas décadas mais recentes.

Terceiro, e mais importante, a teoria marxiana previu a inevitabilidade da revolução proletária. Revolução que nunca ocorreu em lugar nenhum. A revolução bolchevique na Rússia não guarda relação nenhuma com as profecias de Marx. Não teve como força motriz o conflito entre o proletariado industrial e o capital, mas, sim, a pressão de bordões sem nenhum conteúdo socialista, muito menos marxista, como: paz e terra para os camponeses. Bordões esses que, é desnecessário dizer, posteriormente redundariam em seu oposto. O que talvez mais se aproxime de uma revolução da classe trabalhadora, no século XX, foram os eventos de 1980/1981 na Polónia – movimento revolucionário dos trabalhadores industriais (muito fortemente apoiado pela intelligentsia) contra os seus exploradores, quer dizer, o Estado. E este caso solitário de revolução da classe trabalhadora (se pode, por isso mesmo, ser tido como tal) foi dirigido contra um estado socialista, sob a égide do sinal da cruz e com a bênção do Papa.

Em quarto lugar, poder-se-ia mencionar a previsão de Marx sobre a inevitabilidade da queda da taxa de lucro, processo que, ao fim e ao cabo, deveria culminar no colapso da economia capitalista. À semelhança das demais, outra previsão frustrada. Porque até mesmo segundo a teoria de Marx, isso poderia não constituir uma regra operacional obrigatória, visto que a mesma evolução técnica que diminui parte do capital variável nos custos de produção pode diminuir também o valor do capital constante. De modo que a taxa de lucro pode permanecer estável, ou até aumentar, ainda que o que Marx chamou de "trabalho vivo" decline em determinada ponta da produção. E mesmo que esta "lei" fosse válida, o mecanismo pelo qual sua ação provocaria o declínio e o desaparecimento do capitalismo é inconcebível, uma vez que a queda da taxa de lucro pode muito bem ocorrer em condições nas quais o valor absoluto do lucro está crescendo. Isto foi notado, em seus aspectos mais significativos, por Rosa de Luxemburgo, que inventou uma teoria própria sobre o colapso inevitável do capitalismo, que também não se demonstrou menos equivocada.

O quinto preceito do marxismo a revelar-se errado é a previsão de que o mercado acabaria por inibir o progresso técnico. Ora, o que ocorre é justamente o oposto. As economias de mercado mostram-se extremamente eficientes em incentivar o progresso tecnologico, enquanto o "socialismo real" sucumbe à estagnação nessa área. Visto ser inegável que foi o mercado que criou a maior abundância já conhecida na história da humanidade, alguns neomarxistas sentem-se obrigados a mudar de invectiva. Antes, o capitalismo era horrível porque produzia miséria; agora, é horrível porque produz tanta abundância que extermina a cultura.

Os neomarxistas deploram o chamado "consumismo", ou a tal "sociedade de consumo". Em nossa civilização, de fato, existem muitos fenômenos alarmantes e inoportunos, associados com o aumento do consumo. O ponto, no entanto, é que todos sabemos como a alternativa a esta civilização é incomparavelmente pior. Em todas as sociedades comunistas, as reformas econômicas (pelo menos as que conseguiram produzir algum resultado) levaram invariavelmente à mesma direção: a restauração parcial do mercado, ou seja, do "capitalismo".

A chamada interpretação materialista da história até nos forneceu um certo número de ideias e sugestões interessantes, mas sem nenhum valor explicativo. Em sua versão mais forte, mais vigorosa, e para a qual se encontra considerável apoio em um grande número de textos clássicos, tal teoria supõe que o desenvolvimento social depende inteiramente da luta de classes, determinada, em última análise, através da mudança nos "modos de produção", pelo nível tecnológico da sociedade em questão. Ou mais que isso, que a lei, a religião, a filosofia e outros elementos da cultura não têm história própria, visto que sua história é meramente a história das relações de produção. Ora, isso constitui uma afirmação absurda e completamente destituída de fundamentação histórica.

Por outro lado, tomada em seu sentido mais fraco e restrito, a teoria dirá somente que a história da cultura deve levar em conta as lutas sociais e os conflitos de interesse e que as instituições políticas, ao menos negativamente, dependem em parte dos desenvolvimentos tecnológicos e dos conflitos sociais. Isso, no entanto, não passa de uma daquelas indiscutíveis banalidades, conhecidas muito antes do tempo de Marx. O que faz da interpretação materialista da história ou um absurdo ou uma banalidade.

Outro elemento do pensamento de Marx carente de poder explicativo é sua teoria sobre o trabalho. Marx fez dois acréscimos mais expressivos às teses de Adam Smith e David Ricardo. Primeiro, afirmou que, nas relações entre trabalhador e capital, o que se vende é força de trabalho, e não trabalho; em segundo lugar, fez uma distinção entre trabalho abstrato e concreto. Nenhum desses dois princípios tem base empírica ou é necessário para explicar crises, competição e conflito de interesses. As crises e os ciclos econômicos explicam-se pela análise do movimento dos preços, e a teoria do valor nada acrescenta à compreensão de ambos. Ao que parece, a economia da época – enquanto distinta das ideologias econômicas – não seria muito diferente do que é hoje se Marx nunca tivesse nascido.

Os pontos que mencionei não foram escolhidos ao acaso: constituem a espinha dorsal da doutrina marxista. Em contrapartida, quase nada no marxismo oferece soluções para os diversos problemas do nosso tempo, principalmente porque esses problemas nem eram urgentes um século atrás. No que tange às questões ecológicas, por exemplo, não encontramos em Marx mais do que banalidades românticas sobre a unidade do homem com a natureza. Os problemas demográficos teriam passado completamente batidos, não fosse a recusa de Marx em acreditar que qualquer fenômeno parecido com uma superpopulação, em sentido absoluto, pudesse ocorrer um dia. Tampouco os dramáticos problemas do Terceiro Mundo achariam socorro em sua teoria. Marx e Engels eram fortemente eurocêntricos. Desprezavam outras civilizações e elogiavam os efeitos progressistas do colonialismo e do imperialismo (na Índia, na Argélia, no México). O que importava para eles era a vitória da civilização sobre o atraso; a ideia de determinação dos povos, para Engels, era motivo de escárnio.

O que o marxismo explica menos ainda é o socialismo totalitário, que elegeu Marx como seu profeta. Muitos marxistas ocidentais costumavam afirmar que o socialismo em sua expressão soviética nada tinha a ver com a teoria marxista e, se se revelou tão deplorável, foi mais por causa das condições específicas da Rússia. Se é assim, como é que tanta gente no século XIX, especialmente os anarquistas, poderia ter previsto, com tamanha exatidão, em que o socialismo,com base nos princípios marxistas, iria dar – ou seja, em escravismo de estado? Proudhon dizia que o ideal de Marx era transformar seres humanos em propriedade do estado. Para Bakunin, o socialismo marxista redundaria num governo dos renegados da classe dominante e teria por base uma exploração e uma opressão piores do que as anteriormente conhecidas. O anarco-sindicalista polonês Edward Abramowski sustentava que, se por milagre, o comunismo vencesse em meio às condições morais da sociedade contemporânea, traria exploração e divisão de classe ainda mais graves que as existentes à época (porque as alterações institucionais não alteram as motivações e o comportamento moral do homem). Benjamin Tucker dizia que a única cura que o marxismo conhece para os monopólios é o monopólio único.

Estas profecias foram feitas no século XIX, décadas antes da Revolução Russa. Seriam seus autores clarividentes? Não. Pelo contrário, tais previsões eram apenas deduções racionais e o sistema de servidão socializada podia ser inferido das coisas que Marx anunciava. Seria, é claro, absurdo querer dizer que tais consequências eram intenção do profeta, ou que o marxismo foi a causa eficiente do comunismo do século XX. A vitória do comunismo russo resultou de uma série de acidentes extraordinários. Mas é possível dizer que a teoria de Marx contribuiu fortemente para o surgimento do totalitarismo, e que o municiou de configuração ideológica. Ao enunciar a nacionalização universal de tudo, enunciou, consequentemente, a nacionalização dos seres humanos. Mais precisamente, o que Marx fez foi tomar emprestado aos saint-simonistas o mote segundo o qual, no futuro, não haveria mais governo, só a administração das coisas. Só não lhe ocorreu, porém, que não se pode administrar as coisas sem utilizar as pessoas para esse fim, e que a administração total das coisas implica a administração total das pessoas.

Isso tudo não significa que a obra de Marx não mereça ser lida; é parte da cultura europeia e como tal deve ser lida do mesmo modo que se leem muitos clássicos – como se leem, por exemplo, os trabalhos de Descartes em física, ainda que fosse tolo tomá-los como um manual válido para fazer física atualmente. Mesmo nos antigos países comunistas, a repugnância com que hoje são tratados os textos de Marx e dos marxistas deve passar; lá também, futuramente, eles voltarão a ser lidos como reminiscência do passado. Uma das razões da popularidade do marxismo entre as pessoas educadas é que, em suas formulações simples, trata-se de uma teoria fácil. Até Sartre notou que os marxistas são preguiçosos. Na verdade, o que essas pessoas apreciam é ter uma chave que abra todas as portas, uma explicação universalmente aplicável a tudo, um instrumento que torna possível dominar toda a história e toda a economia sem ter de propriamente estudar.

O desaparecimento do marxismo significa o fim automático da tradição socialista? Não necessariamente. Tudo, é claro, depende do significado da palavra "socialismo", e aqueles que ainda insistem em usá-la como profissão de fé geralmente relutam em declarar o que entendem por isso, fora do campo das generalidades vazias. Urge então que se façam algumas distinções. O problema é que o desejo de detectar "leis históricas" levou muita gente a conceber o "capitalismo" e o "socialismo" como "sistemas" globais, diametralmente antagônicos. Mas não há termo de comparação. O capitalismo desenvolveu-se espontânea e organicamente da propagação do comércio. Ninguém o planejou, nem ele demandava uma ideologia abrangente, enquanto o socialismo surgiu como um constructo ideológico. Em última análise, o capitalismo é a natureza humana em ação – quer dizer, a ambição humana autorizada a seguir o seu curso. Ao passo que o socialismo consiste numa tentativa de institucionalizar e impor a fraternidade. Agora, parece óbvio que uma sociedade na qual a ambição é a principal motivação dos atos humanos, não obstante os aspectos mais repugnantes e deploráveis que isso possa implicar, ainda é incomparavelmente melhor que uma sociedade fundada na fraternidade obrigatória, seja o socialismo nacional, seja internacional.

A ideia de um socialismo como "sociedade alternativa" ao capitalismo beira a noção de servidão totalitária; a abolição do mercado e a estatização generalizada não pode conduzir a outro resultado. E a crença em que se possa implantar uma igualdade perfeita por meios institucionais não é menos perversa. O mundo até conhece bolsões de igualdade voluntária, tal como a praticada em alguns mosteiros ou em algumas raras iniciativas de cooperação secular. Mas a igualdade obrigatória demanda métodos inevitavelmente totalitários, e o totalitarismo implica desigualdade, uma vez que pressupõe acesso desigual à informação e ao poder. Nem, para falar de um ponto de vista prático, a igualdade na distribuição de bens materiais é possível, uma vez que o poder se concentra nas mãos de uma oligarquia que não podemos controlar. Eis porque nada, nem de longe assemelhado à igualdade, jamais existiu num país socialista. O que condena esse ideal, de antemão, à autofrustração.Sabemos muito bem por que a ideia de uma planificação absoluta é economicamente catastrófica; as críticas de Friedrich von Hayek sobre isso têm sido amplamente confirmadas pela experiência de todos os países comunistas, sem exceção. O socialismo nesse sentido significa que as pessoas são impedidas pela repressão de engajar-se em qualquer atividade socialmente útil, a menos que sob as ordens explícitas do Estado.

Todavia, a tradição socialista é rica e variada, e inclui muitas expressões diversas do marxismo. Algumas ideias socialistas, na verdade, já vêm com uma tendência totalitária embutida. Isso se aplica à maioria das utopias do Renascimento e do Iluminismo, como também a Saint-Simon. Já outras adotam valores liberais. Tão logo o socialismo, que começou como uma fantasia inocente, se tornou um movimento político concreto, nem todas as suas variantes vestiram a ideia de uma "sociedade alternativa", e entre as que o fizeram, nem todas a levaram sério.

As coisas pareciam mais claras antes da Primeira Guerra Mundiai. Os socialistas e a esquerda em geral reivindicavam não somente escolas iguais, universais e obrigatórias, serviço social de saúde, impostos progressivos e tolerância religiosa como também educação secular, o fim da discriminação de nacionalidade e raça, a igualdade feminina, liberdade de imprensa e associação, regulamentação jurídica das condições de trabalho e um sistema de seguridade social. Todos lutavam contra o militarismo e o chauvinismo. Os líderes socialistas da Europa do período da Segunda Internacional – gente da estatura de Jaurès, Babel, Turati, Vandervelle e Martov – personificavam o que havia de melhor na vida política do continente.

Mas tudo mudou com o fim da guerra, quando a palavra "socialismo" (e em grande medida "esquerda") começou a ser quase que totalmente monopolizada pelo socialismo leninista-stalinista, que distorcia o significado da maioria dessas reivindicações e slogans, para defender o oposto. Ao mesmo tempo, na verdade, grande parte desses ideais "socialistas", foram sendo realizados pelos países democráticos que praticavam a economia de mercado. Infelizmente, os movimentos socialistas não-totalitários, sofreram décadas de inibições ideológicas e acovardaram-se ante a tarefa de denunciar e enfrentar o sistema político mais despótico e homicida do mundo (depois do nazismo). Afinal, o comunismo soviético não deixava de ser uma espécie de socialismo, ornado de internacionalismo e de uma fraseologia herdada à tradição socialista. Foi assim que a tirania leninista conseguiu apossar-se da palavra "socialismo" com a cumplicidade dos socialistas não-totalitários. Houve, é verdade, algumas exceções à regra, mas não muitas.

Seja como for, os movimentos socialistas contribuiram amplamente para mudar o panorama político para melhor, inspirando uma série de reformas sociais, sem as quais o estado de bem-estar social contemporâneo – que a maioria de nós vê como direito adquirido – seria impensável. Logo, será de fato uma pena se o colapso do socialismo comunista redundar no desaparecimento da tradição socialista como um todo e no triunfo do darwinismo social como ideologia dominante.

Tendo em conta que uma sociedade perfeita nunca será alcançada e que as pessoas sempre encontrarão motivos para tratar mal umas às outras, não deveríamos descartar o conceito de "justiça social", por mais que o ridularizem Hayek e seus seguidores. É verdade que é impossível defini-lo em termos econômicos. Nem é possível deduzir da noção de "justiça social" respostas para perguntas como: que tipo de sistema tributário seria mais desejável, ou mais plausível economicamente, em determinadas condições; que benefícios sociais se justificam ou não; de que modo os países ricos devem ajudar as regiões mais pobres do mundo. Quando se fala em "justiça social" não se expressa mais que uma atitude de consideração para com problemas sociais. E também é verdade que, frequentemente, a expressão "justiça social" é evocada por indivíduos, e até por sociedades inteiras, que se recusam a assumir a responsabilidade por suas próprias vidas. Mas, como diz o velho ditado, o abuso não ab-roga o uso.

Em sua imprecisão, o conceito de "justiça social" assemelha-se ao de “dignidade humana”. É difícil definir o que significa dignidade humana. Não é um órgão incrustado em nosso corpo nem um conhecimento empírico, mas, sem ela, seríamos incapazes de responder a uma pergunta tão simples como: o que há de errado com a escravidão? Igualmente vago, o conceito de justiça social pode ser usado como ferramenta ideológica pelo socialismo totalitário. Mas é um intermediário útil entre a exortação à caridade e à esmola e a justiça distributiva. Não significa a mesma coisa que justiça distributiva porque não implica, necessariamente, o reconhecimento recíproco. Nem consiste, porém, num simples apelo à caridade, pois supõe, embora imprecisamente, que algumas reivindicações podem ter seus méritos. O conceito de justiça social não implica a existência de algo semelhante a um destino comum da humanidade, de que todos participam, mas sugere que o conceito de humanidade faz sentido – não tanto como categoria zoológica, mas moral.

Sem o mercado, a economia entraria em colapso (na verdade, no "socialismo real" nem existe propriamente economia, apenas política económica). Mas existe um reconhecimento geral de que o mercado não resolve automaticamente todos os problemas humanos. O conceito de justiça social é necessário para justificar a crença na existênica de uma "humanidade" e em que devemos enxergar os outros indivíduos como membros desta coletividade, perante a qual todos devemos assumir certos deveres morais.

O socialismo, como filosofia social ou moral, fundamenta-se no ideal da fraternidade humana – que jamais poderia ser implantada por meios institucionais. Nunca houve e nunca haverá, instituição capaz transformar indivíduos em irmãos. A fraternidade compulsória foi a ideia mais perversa que os tempos modernos conceberam; e um caminho perfeito para a opressão totalitária. Neste sentido, o socialismo não passa de um primado da mentira. Isso, porém, não basta para transformar em sucata a ideia da fraternidade humana. Se ela, efetivamente, não pode ser alcançada por intermédio de engenharia social, seu conceito ainda permanece útil como declaração de objetivos. A ideia de socialismo como o projeto de "sociedade alternativa" está morta. Mas não como declaração de solidariedade para com os marginalizados e oprimidos, não como motivação para repudiar o darwinismo social, não como luz que ilumina diante dos nossos olhos propósitos mais elevados que a competição e a ganância. Como tudo isso, o socialismo – não o sistema, mas o ideal – ainda tem suas utilidades.


Leszek Kolakowski(1927-2009) foi membro do Partido Comunista polonês e professor da Universidade de Varsóvia. Foi desligado do partido e da última entidade em 1968, por desavenças políticas. Escreveu "Main Currents of Marxism" (original polonês, publicado em inglês pela Oxford Clarendon Press em 1978 na tradução de P. S. Falla), Horror Metafísico e outros. Lecionou em diversas universidades européias e americanas, firmando vínculo com Oxford, onde faleceu em 2009, deixando como legado uma extensa reflexão acerca dos aspectos metafísicos e culturais das sociedades ocidentais contemporâneas.