sexta-feira, 12 de junho de 2015

Transportes II - A infame regra dos dez anos

Sobre gambiarras na gestão do transporte público paulistano
Este texto foi publicado originalmente no Facebook, na mesma data em que aqui está arquivado

Tenho escrito com frequência sobre o tema, de modo que não é necessário re-escrever tudo o que penso aqui. Um ponto levemente tratado no texto anterior versa sobre a regra dos dez anos: os ônibus urbanos de Sampa podem gastar motor até seus dez anos de idade.

Essa regra é ponto pivotal da minha crítica ao transporte em São Paulo e por dois motivos que irei desenvolver aqui. É nesta regra em que juntam-se farsas do marketing da SPTrans e o lobby dos grandes. Nada contra os grandes, claro, apenas não penso ser saudável empresas favorecidas apenas por terem como "comprar" suas licitações.

O primeiro problema com essa regra infame é o descarte de material em boas condições de uso. É verdade que um motor diesel não dura muito, porém é normal que seja trocado algumas vezes ao longo dos dez anos, mesmo. Desse modo, um veículo bem conservado pode durar tranquilamente de vinte a vinte e cinco anos. E então é trocado quando realmente vale mais a pena obter um novo veículo do que manter o atual.

O segundo é a farsa da frota bem mantida. Os indicadores de frota sempre estarão abaixo da média dos dez anos e então dirão: "mas nossos ônibus são novos". Uma ova. Quem anda de Transppass e Mobibrasil sabe bem as condições em que estão nossos "ônibus novos", dentre os quais alguns fabricados em 2007 e outros em 2011. Se o problema é idade, estes devem ter uma idade equivalente de uns 42 anos de uso.

Ou seja, sobrevivem os empresários que podem vender os veículos novos e os que podem comprá-los: aqueles grandes cujo acesso ao BNDES é fácil. O resultado é um medíocre comércio entre favorecidos do governo, não há vez para os pequenos, que fecham suas portas e botam o sofrido investimento em frota a perder (como aconteceu em 2003 -- o resultado vê-se na imagem abaixo).

A Mercedes ganha, a Caio (que aliás é de um dos maiores empresários de ônibus de SP) ganha, a SPTrans por algum motivo parece ganhar com isso, também. Aí temos um serviço impessoal, prestado por gente que não tá nem aí para a sua frota e ainda precisamos aturar o discurso da qualidade de gestão. Mas é muito para minha cabeça!

FOTO: Rafael S. Silva / Ônibus Brasil - Pátio Guido Calói, na Zona Sul de SP (Capital).

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Transportes I - Meus cinquenta (ou vinte) centavos sobre o transporte público paulistano

Nota (22/junho): Não sei se o projeto decola, porém, dando tudo certo, este texto encabeçará (seguido do "INFAME REGRA DOS DEZ ANOS") uma série de postagens sobre o transporte público, focadas em São Paulo mas com a intenção de instituir uma discussão universal sobre transportes. Este texto fora publicado originalmente no Facebook, na mesma data em que está arquivado.

Foi nesses últimos dias em que a SPTrans resolveu lançar uma proposta para reorganizar as linhas. Vou explicar o porquê de eu tê-la achado boa e, ao mesmo tempo, ruim. A cidade de São Paulo, sabe-se bem, é um miojo de trajetos e vários deles são projeções de diferentes eras -- algumas linhas foram instituídas na era neolítica, outras datam do período cretáceo. Ainda sim, entender porque linhas antigas (p.ex. Lapa - Socorro) são tão demandadas é entender os costumes de transporte do paulistano -- e se entendê-lo, é mais possível respeitá-lo.

O paulistano, bem sabemos, é um povo conservador. E, em alguns casos, tão conservador que também não acha absurda aquela linha indo do Cabo do Bojador até Badghad via Nova Delhi. Nesse sentido, é plenamente necessária uma intervenção a fim de tornar a vida mais prática até para esse povo bastante conservador. Linhas diretas de altíssima capacidade alimentadas localmente sem dúvidas tornariam o sistema mais eficiente e eliminaria a necessidade de se utilizar ônibus grandes em todas as linhas. Mesmo o mais fiel conservador iria se render à integração, afinal começaria a chegar mais rápido ao seu destino, visto que haveria menos linhas no corredor e mais veículos.

Por outro lado (é, vocês precisam suportar a dialética do processo), não se pode ignorar o motivo pelo qual o paulistano é um conservador. São Paulo é uma quatrocentona a caminho do quinhentismo, é de se imaginar que essa não é a primeira tentativa de pôr alguma ordem no sistema. A primeira foi de Setúbal, no final dos anos 70¹. A última por Marta Suplicy, lá pela metade dos anos 2000. Não entrarei nem no âmbito de que a reforma do Haddad seria a terceira feita por um governo petista. O fato de ainda estarmos discutindo isso talvez signifique que nenhuma deu totalmente certo, embora cada uma tenha deixado seu legado -- a de Marta deixou-nos o bilhete único, por exemplo. No entanto, nem a facilidade integração, nem a nova numeração e nem a divisão por áreas foram capazes de sanar o problema.

Ou seja, muito foi mudado, mas vários traçados dos anos 70 estão congelados. E quanto mais pó juntou-se sobre os trajetos dessas linhas, mais a população se acostumou e mais ficou difícil mudar -- quando se vê a briga dos moradores da Z.L. logo se percebe a força do costume. Me parece lógico que um ônibus saindo do Cabo do Bojador e passando por Badghad para chegar ao Cairo não é uma boa solução de transporte. O mais esperto já lerá isso e olhará diretamente para a tesoura. É uma solução ruim, vamos editá-la, certo? Não.

O buraco é mais embaixo. Tal particulares são os trajetos dessas velhas linhas, que, bem ou mal, seus usuários se habituaram a usá-las nos locais em que passam -- mas provavelmente não passariam se o sistema fosse mais direto. Outra característica provocada pelo sistema caótico é a falta de "troncalidade", é o principal pesadelo dos burocratas. O tronco existe a nível de bairro, mas não a nível de distrito (O Butantã tem uns quatro) ou de área (a área oito -- laranja -- tem dezenas): é aquela avenida principal em que ficam todos os comerciantes conhecidos pelo bairro e onde toda a juventude começa a carreira. O fato de o tronco ser essa avenida faz com que a lotação não se centralize num ponto só e de quebra facilita muito o transporte para quem é do determinado bairro.

"Mas, Tadeu, mimimimimi?" É verdade, isso torna o sistema ineficiente e atrasado. É verdade, isso exige uma frota muito maior do que originalmente necessário. Porém, se é para mudar esse modelo, quem dar-me-á a certeza de que os fantasmas a praguejarem o sistema hoje não o farão amanhã? Ontem os ônibus das pequenas viações, bem mantidos e limpos, foram extirpados em favor dos grandes grupos, amanhã podemos estar, quase todos, nas mãos das cooperativas, responsáveis pelo transporte local nos bairros -- e quem anda nos infames micro-ônibus sabe o quanto é ruim. Hoje compartilhamos as conduções com as baratas a sujeira a verter o chão anti-aderente cor azul em cor bege. Hoje temos micro-ônibus em linhas anteriormente operadas por ônibus grandes.

Enfim, se ninguém pode me garantir ônibus decentemente mantido, corretamente dimensionado e operado com esmero, profissionalismo, não tenho porque acreditar nem na regra dos dez anos², nem no conto do vigário de ser o novo sistema a solução para nosso males. Não há porque imaginar que um sistema direto alimentado por um distribuído iria, automaticamente, fazer os funcionários mais prestativos, nem os ônibus melhor mantidos. E ainda tenho minhas dúvidas de que faria o sistema operar nos horários previstos! Portanto, enquanto não me derem essa certeza, por favor, devolvam minha linha direta.

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1 Mais sobre isso trato no texto "Oriente-se" publicado em meu blog, ainda que de modo um tanto quanto humorístico.

2 A SPTrans estipula que os ônibus devem ser trocados de dez em dez anos, porém os ônibus estão em pior estado do que se costumava ver nos anos 90. (22/jun) Mais sobre a regra dos dez anos no próximo texto da série: A infame regra dos dez anos