domingo, 2 de março de 2014

Turmalina: idas e vindas, vida e volta ao Bofiglioli

Quando mudei-me para Turmalina, havia, ali, um dos últimos lugares em que pude ser eu mesmo. Meu jeito por vezes sério, por vezes pueril encontrava ali energia para todos os ânimos: Turmalina era um dos últimos lugares em que era possível ir à padaria para comprar pão e leite tipo A; era um dos únicos lugares em que, até duas da manhã, nada mudava muito em relação às seis da tarde.

Claro, digo duas da manhã porque não estava lá para ver se o movimento continuava, pois, dizem, "nada acontece de bom depois das duas da manhã" -- e não me faltaram situações para aferir a veracidade desse ditado, embora nenhuma haja sido em Turmalina.

Os moradores eram gente pacata, mas havia algo na Av. Giovanna Cabral que tornava Turmalina um ícone boêmio, além de seu nome digno de música: as casas de show. Não era possível falar muito em bares, pois "a Cabral", tal como referida pelos moradores e frequentadores, era um baluarte da arquitetura neoclássica e a prefeitura proibira modificações -- e ainda havia um rígido conjunto de regras sanitárias e estéticas ditado pela subprefeitura.

Lembro-me bem da Rosa Púrpura da Alves, situado na intersecção entre a comercialmente movimentada Av. Maria Martha Alves e 'a Cabral'. O lugar tinha nome de bar de português, mas, se bem me lembro, o Marquito -- proprietário do estabelecimento -- era de Valência. As mesas eram cobertas com toalhas de pano esburacadas que só se justificavam perante as regras da prefeitura a título de estilo, somado ao fato de que a cultura dos fiscais não os permitia aferir se batia com a arquitetura oitentista do restaurante.

Sentava-me ali, duas fileiras para trás do palco. Geralmente, acontecia, em dias chuvosos, de alguns bêbados se alojarem da tempestade ali dentro e cinco minutos depois começarem a sapatear no palco de forma grotesca e sincrética, criando, assim, um evento humorístico que provavelmente só existia em Turmalina. O chopp do Rosa não era algo necessariamente bom, nem lá muito barato, porém sempre havia alguma batida de vodka apenas para passar o tempo, quando o estômago fizesse cara feia para o copo semi-cheio ou semi-vazio padrão alemão estacionado sobre a mesa.

Da janela larga e um pouco suja de gordura dava para ver as trincas nas calçadas e, eventualmente, alguém tropeçando nela, mas sempre levantado aos risos. Poucas vezes vi em Turmalina alguém que não soubesse sorrir de modo alegre e debochado, a menos que fosse algum mafioso (mas estes, geralmente, usavam gravatas ridiculamente coloridas, tornando-os fáceis de se identificar). Os carros eram do ano, e as pessoas se vestiam conforme a época, embora não como ditava a moda. E raramente via-se alguém acompanhado sem tagarelar.

Pagava a conta, saía e olhava os casais andando de mãos dadas, ou se pegando nos cantos. Era engraçado como alguns quase se engoliam durante os beijos, mas isso não parecia incomodar. Os moradores até diziam que era melhor alguns tropicalies (uma gíria local para malandro de praia que só vê praia no fim de semana mas que mesmo assim está sempre vestido para a finalidade de pisar na areia molhada) se engolindo do que aparecer algum triângulo amoroso francês com a baguete debaixo do braço -- "esses casais são a marca do nosso 'foda-se'".

Os tropicalies, entretanto, mesmo andando de bermuda ou saia, geralmente usavam chapéu tipo Panamá e óculos de sol RayBan, pois faziam questão de se integrarem à elegante paisagem.

A luz de turmalina exige um parágrafo a parte. Ali não ventava muito, e no calor era, às vezes, infernal. Eu morava em um flat (em um estilo, hoje, seria visto por uma construtora como um duplex de luxo) de janela grande para "a Martha Alves", aquela avenida que falei mais para cima, e via o sol entrar pela janela do mesmo jeito que via banhar a praia de uma cidade costeira. Faltava, porém, a brisa, e, eventualmente, a praia.

Acontece, entretanto, que as coisas mudavam. Eu mesmo mudei. Mudei para uma casa térrea, em uma transversal da Av. Martha, a Rua Tapioca Chinesa. Essa rua tinha um intenso tráfego de ônibus a diesel, articulados e convencionais. Era infernal dormir depois das 4 h AM, porém havia mais espaço e estava, na época, tentando morar com uma mulher um tanto quanto neurótica chamada Laura. Gostava dela, mas fui praticamente empurrado do flat para lá, pois a mocinha sabia bem que sozinho não iria sair do flat.

Laura conseguiu, com isso, me privar do pequeno escritório do flat, me jogando em um quarto para a rua com uma cama de casal e tudo do escritório aglomerado em volta. Não era possível usar o outro quarto (mais tranquilo, e com vista para o quintal) porque a sogra se instalara ali. Durante esse tempo, então, produzi pouco e também pouco observei. Quando menos me dei conta, tudo tomava uma forma metálica de alumínio contínuo e reluzente em direção ao céu.

Vi, então, que Turmalina virava uma Berrini. Deparei-me com o proprietário do Rosa fechando a casa e me informando que estava bem pago para viver sem restaurante para resto da vida, embora afirmasse que iria sentir saudades dos clientes. Os vidros altos e os entalhes na pedra das fundações e estruturas fôra substituído por prédios de brutal concreto ou de alumínio reluzente, de formas quadradas.

Aquilo era sufocante. Até o prédio em que tive meu flat estava, segundo falavam, em vias de ser vendido à Mendes Sá, a construtora mais famosa da cidade, na época.

Minha cabeça não processava mais dados ou informações. Tudo era espanto, fora de casa. E dentro, bem, acho que não tinha casa, afinal. Na calada da noite, botei meus livros favoritos, trabalhos, máquina de escrever e computadores no porta malas de minha banheira sobre rodas e mandei-me para o Bonfiglioli.

Havia morado lá durante bastante tempo. E, novamente, tudo mudara. É bem verdade que o traçado das ruas e vários conjuntos de casas eram basicamente os mesmos, mas a Av. Corifeu tinha, agora, três faixas em cada sentido e mais uma de estacionamento. Instalara-se um corredor de ônibus, no canteiro central da avenida, e os trólebus subiam em direção ao Terminal Vila Yara, em Osasco.

Sim, era bonito, os postes da fiação tinha design simples e moderno, mas sem serem espalhafatosos. Havia árvores grandes traçando sombra sobre a avenida. Mas aquilo não era mais meu bairro. Havia prédios -- ou melhor: caixas de fósforo empilhadas -- por todos os cantos da avenida, e a esquina com a Praça Elis Regina era, agora, marcada por placas indicando caminhos em direção à Raposo Tavares.

Fiz a conversão, entrei na praça. Agora, a praça tinha uma mão de cada lado, sendo canteiro de uma avenida. A avenida, então, continuava para onde havia um conjunto habitacional, em direção à Raposo. Vendo aquele trevo rodoviário, de longe, compreendi que muito do que conheci já não existia mais.

Entretanto, ainda via alguma vida lá. E os imóveis, embora simplórios e coalhados de apartementos pequenos, ainda representavam mais variedade e cores do que aqueles que se viam em Turmalina.

Me hospedei na casa de um amigo que morava por aquelas bandas e, como não ia lá há tempos, perguntei o que ocorria. Responde-me ele que aquilo tudo fôra consequência da mudança de zoneamento e alta demanda por parte das construtoras devido à construção de uma estação de metrô no Largo do Bonfiglioli.

Walfredo, esse meu amigo, ainda me disse que lá para cima até as ruas estavam irreconhecíveis, embora tudo fosse bonito e arborizado.

Conformei-me.

Aguardei pela noite. Fiquei a observar o movimento. Tudo era entra e sai dos prédios e tráfego entre Raposo e Corifeu. Às dez, tudo começou a silenciar. Só então dei de ombros, ri e notei que, no fundo, o bairro não perdera sua vocação suburbana e achei ali, em um dos maiores defeitos do bairro, a identificação com uma parte de mim e da minha vida.

Quiçá vivamos só dos defeitos!